Dizem que escrever é um dom. Eu considero um desabafo, um vômito, um cuspe
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Jaz teu réquiem
Nunca fui simpático em relação à velórios; devo ter ido em três ou quatro no máximo, e em todos é sempre aquela mesma ladainha: Viúva chorando, cafézinho fraco, molecada correndo pra lá e pra cá, e aquele cheiro insuportável de difundo empalhado mesclado aos lírios podres.
Porém farei questão de comparecer especialmente à um velório, o meu. Sim, eu sei que é meio óbvio mas quando digo que estarei lá, não me refiro ao meu corpo presente, até mesmo porque esse será apenas um presuntão amontoado numa caixa de madeira, mas estarei em espírito e ficarei sentadinho de pernas cruzadas pitando um cigarrinho ao lado do camarada que acabou de bater as botas, eu.
Recuso qualquer oferta de passagem para outras vidas antes do funeral, sejam elas ofertadas pelo Todo Poderoso, ou sejam elas ofertadas pelo Tinhoso Belzebu. Eles é que não me venham com aquele papinho clichê de luz azul e fim do túnel, nessa eu não caio. Ficarei aqui, e desmentirei qualquer lágrima de crocodilo que pingares em meu caixão durante a unção do Padréco.
Circularei por todo canto me embrenhando no meio das rodinhas de conversa, e me emputecerei com a hipocrisia póstuma que costuma açoitar aqueles que permanecem vivos: “Pobre coitado, era um sujeito tão bom, quase um santo” – Santo é a senhora sua mãe! E para aqueles verdadeiros e despudorados que se atreverem à relembrar as minhas falhas e bobagens em meio à essas lamúrias de nostalgia, esses sim terão o meu eterno apreço.
Tomarei um cafezinho, brincarei de pega-pega com a molecada, e provavelmente darei muitas risadas com aquelas piadinhas que todo tio cretino teima em contar durante os velórios; seria um dia bacana e cansativo se eu estivesse vivo.
Quando entoarem o salmo final e finalmente encherem-me de terra nos olhos, darei um beijo carinhoso à cada um que o mereça, e tentarei perdoar à todos que me fizeram mal, todavia um perdão que não garanto, pois mesmo depois de dormir pretendo guardar minhas memórias, e o mal que fiz, carregarei para sempre dentro dessa alma penada.
Bruno Ottenio
Porém farei questão de comparecer especialmente à um velório, o meu. Sim, eu sei que é meio óbvio mas quando digo que estarei lá, não me refiro ao meu corpo presente, até mesmo porque esse será apenas um presuntão amontoado numa caixa de madeira, mas estarei em espírito e ficarei sentadinho de pernas cruzadas pitando um cigarrinho ao lado do camarada que acabou de bater as botas, eu.
Recuso qualquer oferta de passagem para outras vidas antes do funeral, sejam elas ofertadas pelo Todo Poderoso, ou sejam elas ofertadas pelo Tinhoso Belzebu. Eles é que não me venham com aquele papinho clichê de luz azul e fim do túnel, nessa eu não caio. Ficarei aqui, e desmentirei qualquer lágrima de crocodilo que pingares em meu caixão durante a unção do Padréco.
Circularei por todo canto me embrenhando no meio das rodinhas de conversa, e me emputecerei com a hipocrisia póstuma que costuma açoitar aqueles que permanecem vivos: “Pobre coitado, era um sujeito tão bom, quase um santo” – Santo é a senhora sua mãe! E para aqueles verdadeiros e despudorados que se atreverem à relembrar as minhas falhas e bobagens em meio à essas lamúrias de nostalgia, esses sim terão o meu eterno apreço.
Tomarei um cafezinho, brincarei de pega-pega com a molecada, e provavelmente darei muitas risadas com aquelas piadinhas que todo tio cretino teima em contar durante os velórios; seria um dia bacana e cansativo se eu estivesse vivo.
Quando entoarem o salmo final e finalmente encherem-me de terra nos olhos, darei um beijo carinhoso à cada um que o mereça, e tentarei perdoar à todos que me fizeram mal, todavia um perdão que não garanto, pois mesmo depois de dormir pretendo guardar minhas memórias, e o mal que fiz, carregarei para sempre dentro dessa alma penada.
Bruno Ottenio
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Sorriso doloso
A parte de trás do cabelo cor de sol ficava enrolada formando um volumoso coque no alto da cabeça, a franja era delicadamente sobreposta sobre as sobrancelhas artisticamente delineadas. Pintava os olhos e os lábios, remodelava os cílios, e deixava escapar um sorriso de canto de boca quando conferia-se pela última vez no espelho do guarda-roupa arcaico. Jogava a bolsa sobre os ombros, pedia a benção de Jah, e tomava o ônibus às nove.
Vivia à dizer-me que a vida no departamento pessoal era um bocado difícil, provavelmente seria deveras. Passava o dia contando horas, férias, folgas, avisos, décimos terceiros, extras e até mesmo tempo; contava tanto que às vezes encontrava-se consigo mesma em seus sonhos inconscientes, e lhe contava os seus segredos, seus planos, seus medos. Pensava em ir para o litoral, São Vicente talvez, contou pra si mais uma vez.
Atrás da parede de vidro, via-se apenas seus cabelos reluzentes trançados de maneira bonita e engraçada, quando levantava a cabeça e observava o movimento continuo na repartição pública, abria-se num sorriso tímido e agressivo se acaso visse algo que merecesse tal gesto; sorriso embaraçoso, doloso, difícil não retribuir.
E assim vivia, contava; e quando não o fazia, apenas ouvia o que as músicas lhe diziam e abria um novo sorriso embotado de esperança e bons fluídos.
(Bruno Ottenio)
Vivia à dizer-me que a vida no departamento pessoal era um bocado difícil, provavelmente seria deveras. Passava o dia contando horas, férias, folgas, avisos, décimos terceiros, extras e até mesmo tempo; contava tanto que às vezes encontrava-se consigo mesma em seus sonhos inconscientes, e lhe contava os seus segredos, seus planos, seus medos. Pensava em ir para o litoral, São Vicente talvez, contou pra si mais uma vez.
Atrás da parede de vidro, via-se apenas seus cabelos reluzentes trançados de maneira bonita e engraçada, quando levantava a cabeça e observava o movimento continuo na repartição pública, abria-se num sorriso tímido e agressivo se acaso visse algo que merecesse tal gesto; sorriso embaraçoso, doloso, difícil não retribuir.
E assim vivia, contava; e quando não o fazia, apenas ouvia o que as músicas lhe diziam e abria um novo sorriso embotado de esperança e bons fluídos.
(Bruno Ottenio)
domingo, 9 de outubro de 2011
Amnésia induzida
Deixe de desdém mulher, não finja que esqueceu-se dos meus gostos musicais e nem pense que falhastes em minha memória aquelas várias epopéias que me contaste naquelas noites de Julho.
Agora tu passas em frente ao botequim e nem se atreve a torcer o pescoço para acenar-me com riso bobo de poetisa que sempre fostes; inconformo-me com tamanha ignorância, e desatino em cachaça junto aos meus “amigos”, que bebem, e cantam Ataulfo Alves desgostosos feito eu.
Aquele presente que me deu no dia em que completei anos, ainda guardo com muito apreço e estima, faz-me lembrar de ti sempre que o vejo sobre a estante de mogno empoeirada. Mas não arrisco à dizer que tais lembranças sejam benéficas, não sei de fato o que elas representam, mas o sabor é tão doce que amarga em meu paladar já inapurado.
Pensas que não percebi quando me olhou de canto de olho ontem no metrô rumo à consolação, seus dedos negros folheavam inútilmente “Tristes Trópicos” enquanto me fitava ressabiada, Lévi-Strauss nunca havia sido tão indiferente diante de teus olhos dispersos.
Sei que já deixou outros bebuns à torto direito, e que cada um morre um pouco dentro de ti à cada dia, mas hoje é domingo e está fazendo sol, talvez passe em sua casa para irmos ao cinema, ou talvez volte para a boemia que tão bem me quer e encontre você em outras rebentas, dessa forma, também morrerei mais um pouco e à matarei outro tanto.
Agora virei marxista, ando dando pulos, e fazendo revoluções verdadeiramente legítimas, em breve você me verá na televisão ou irá em meu velório. Depois disso, peço por favor que não vanglorie-se ao dizer que um dia fui teu. Guarde esse segredo, e me deixe em sua eterna amnésia.
(Bruno Ottenio)
Agora tu passas em frente ao botequim e nem se atreve a torcer o pescoço para acenar-me com riso bobo de poetisa que sempre fostes; inconformo-me com tamanha ignorância, e desatino em cachaça junto aos meus “amigos”, que bebem, e cantam Ataulfo Alves desgostosos feito eu.
Aquele presente que me deu no dia em que completei anos, ainda guardo com muito apreço e estima, faz-me lembrar de ti sempre que o vejo sobre a estante de mogno empoeirada. Mas não arrisco à dizer que tais lembranças sejam benéficas, não sei de fato o que elas representam, mas o sabor é tão doce que amarga em meu paladar já inapurado.
Pensas que não percebi quando me olhou de canto de olho ontem no metrô rumo à consolação, seus dedos negros folheavam inútilmente “Tristes Trópicos” enquanto me fitava ressabiada, Lévi-Strauss nunca havia sido tão indiferente diante de teus olhos dispersos.
Sei que já deixou outros bebuns à torto direito, e que cada um morre um pouco dentro de ti à cada dia, mas hoje é domingo e está fazendo sol, talvez passe em sua casa para irmos ao cinema, ou talvez volte para a boemia que tão bem me quer e encontre você em outras rebentas, dessa forma, também morrerei mais um pouco e à matarei outro tanto.
Agora virei marxista, ando dando pulos, e fazendo revoluções verdadeiramente legítimas, em breve você me verá na televisão ou irá em meu velório. Depois disso, peço por favor que não vanglorie-se ao dizer que um dia fui teu. Guarde esse segredo, e me deixe em sua eterna amnésia.
(Bruno Ottenio)
domingo, 18 de setembro de 2011
És bonança
Baboseira
Pinte as unhas dos pés pois sabes que neles tenho fetiche, mas não penteie os cabelos, deixe-os assim, adoro esse desgrenhamento.
Hoje saio às quatro do trabalho, passarei no mercado e comprarei uma garrafa de vinho tinto, e um maço de cigarros para nós dois, voltei a fumar. De proveito, dou um pulo na locadora e pego aquele filme ridículo que você está com palpite, nem sequer lembro o nome.
Faça aquele macarrão ao pesto que tu sempre acertastes a mão; coloque dois pratos sobre a mesa e me espere ouvindo jazz, Miles Davis por favor, não precisa de luz de velas, deixe de frescuras, já temos energia elétrica e assim consigo vê-la melhor entre uma garfada e outra.
Jogue um colchão no chão da sala, e estenda aquele lençol de sede italiana que você ganhou de natal da sua tia-avó, bote o filme clichê, e prometo que tentarei prestar atenção; pouco me importa o final, só quero dormir com a mão em teu seio nu, e o braço enrolado em seu corpo suado.
Pela manhã, só desejo sentir seu hálito adoravelmente quente e malcheiroso me desejando um bom dia como quem acordara pela primeira vez na vida, passe um café fresco e me conte sobre o seu dia anterior, porém faça-me o favor de não falar em política e inflação, se faltar assunto, não diga que me ama, nem tampouco que me adora, apenas abra seu sorriso branco, e diga como é bom estar comigo, ficarei tímido, corarei, mas depois de cinco minutos inteiros, direi o mesmo sem demagogia.
(Bruno Ottenio)
domingo, 31 de julho de 2011
Estopim
Coçou mais uma vez os olhos por baixo dos óculos de grau e jogou com raiva a caneta sobre a folha de caderno ainda em branco, o relógio acusava oito horas da manhã de um sábado de outubro; lembrou com pesar a aflição que o açoitou ao receber o tema proposto para o seu folhetim semanal que seria publicado no domingo subseqüente: “O amor segundo os amantes”. Tema difícil deduziu logo de cara, nada lhe vinha à mente sobre a dissertação proposta, leu até alguns poemas de Rimbaud para encontrar inspiração para algo tão cauteloso e polêmico, não funcionou.
Equivocar-se falando de economia, política, ou talvez de gastronomia, é absolutamente tolerável, mas equivocar-se sobre o amor, é considerado uma heresia sem precedentes, o amor inquieta os leitores, causa frissom as madames, e amolece os doutores, - “Xingue a mamãe, mas não fale mal do meu dengo !” – tem gente que se ofende, pensou.
Recostou-se novamente na mesa, empunhou a caneta na mão esquerda, e encheu o peito como se fosse vomitar um milhão de palavras doces e singelas sobre o amor [...] nada. Enraivou-se mais uma vez e decidiu desvirtuar, levantou-se metendo um chute na cadeira e foi atrás de um estopim. Encheu um copo americano até o meio de cachaça Pedra 90, e virou numa talagada só, largou-se no sofá, ligou a TV, e zapeou cada inútil canal a procura de algo que o estimulasse literariamente; a urgência estipulada pelo editor chefe do jornal, só fazia aumentar a sua angustia, inquietou-se com a quantidade de baboseiras que a TV o impunha, e decidiu sair. Calçou os sapatos, ajeitou a camisa por dentro da calça, vestiu o paletó, e antes de sair passou a mão por cima da estante da sala apanhando um maço de cigarros.
Quem o via caminhando no calçadão de Ipanema embaixo de um sol escaldante, achava a figura no mínimo pitoresca; andava vagarosamente ajeitando o bigode que por muito pouco não cobria toda a boca, sacou um cigarro e o acendeu com as mãos tremulas, virou-se para o mar e imobilizou-se durante alguns segundos; continuava tão blasé quanto anteriormente, sua mente nunca esteve tão auto-suficiente, não pensava em nada, nem sequer percebeu o quanto o dia estava bonito.
“Maldito tema” – pensou mais uma vez inconsolado. Suando feito um porco embaixo do paletó com ombreiras, chegou até uma barraca de bagulheiras, sentou-se em frente ao mar, e pediu uma água de coco. Alguns moleques jogavam futebol na areia como se fosse um jogo entre Brasil e Argentina tamanha a seriedade e desempenho dos jovenzinhos, uns rapazes surfavam e faziam poses para as garotas de biquíni, as garotas por sua vez, estavam mais preocupadas em se bronzear e falar da vida alheia, alguns ciclistas passaram numa velocidade incrivelmente rápida logo atrás no calçadão, torceu o pescoço pra ver mas já estavam longe, tentou mais uma vez concentrar-se e focar a sua atenção para aquilo que teria de escrever, mas de nada lhe adiantava.
Ainda sentado em frente ao mar, e imerso em sua ausência literal, chegou a conclusão que ele próprio não tinha a menor idéia do que era o amor, talvez nem sequer havia sentido-o algum dia, considerou que seria impossível para um sujeito que nunca amou ninguém escrever sobre algo que nunca desfrutou; sentiu um vazio interminável no peito, engoliu a seco e sentiu saudades daquilo que nunca teve, acendeu mais um cigarro e decidiu que desistiria da publicação, enfiou a mão no bolso do paletó e apanhou o celular na intenção de ligar para o editor chefe para informá-lo sobre a sua desistência; antes de ligar, ergueu os olhos e viu rente ao mar um casal de velhinhos caminhando pacientemente sobre a areia molhada, de mãos dadas e cabelos brancos, trocavam beijos entre os passos e cafunés alternados, foi o sinônimo mais expressivo de amor que ele já havia visto; e num estalo de criatividade e sentimentalismo correu para o seu apartamento, sentou-se sobre a cadeira rente à mesa, e desandou à escrever na folha branca de papel, ao fim, considerou um dos seus melhores folhetins já escritos, “A amor segundo os amantes – O segredo da eternidade”, orgulhou-se do título; faltando pouco tempo para o fechamento da edição, enviou o seu material imbuído da certeza do sucesso e excelência do mesmo.
Na segunda-feira cedo, chegou radiante ao jornal e cumprimentou Elisete, a recepcionista, com um entusiasmado bom dia; além de não responder, a moçoila esticou-lhe um envelope e disse com uma voz aguda. – “O chefe pediu pra te entregar”. Pegou o papel das mãos da moça, botou a maleta no chão, abriu aflito o envelope e puxou o documento, alisou o bigode, e leu somente o título – “Carta de Demissão”.
(Bruno Ottenio)
quarta-feira, 13 de julho de 2011
O bom Crioulo, no samba é professor
Pseudo-crônica
Depois de muita ladainha e muito tititi, o malandro deixou de conversa e resolveu fazer o que lhe seria pago para que fosse feito. Botou o copo de cerveja em cima de um caixote de frutas improvisado de mesa, puxou com vontade o último fumaceiro da cigarrilha de palha e o lançou pra longe quase atingindo os pés descalços de um neguinho maltrapilho que observava tudo atentamente, deu uma última ajeitada no chapéu panamá impecavelmente branco, e fez notável a sua vaidade quando conferiu pela última os sapatos para certificar-se de que eles ainda estavam limpos e engraxados do mesmo modo de que quando chegou no morro; juntou o violão ao peito, pigarreou com a voz rouca de baixo tenor, estralou os dedos um por um, e desatinou o vozeirão embalado com a harmonia do violão.
A Favela virou uma festa só, o murmurinho silencioso de apreensão, tornou-se gritos histéricos de alegria coletiva; o negrinho curioso e mal vestido, agora pulava, cantarolava, e sorria de contentamento envolvido pelo samba do malandro marrento; aos poucos o pandeiro também ganhou destaque junto aos acordes precisos do violão, em pouco tempo o samba estava feito.
Cerveja, samba, mulatas, e alegria, era isso que o malandro mais gostava nessa vida, exibido que só ele, brincava de fora à fora no braço extenso do violão, de estipe elegante e despojado, cantava fazendo charme pra moças que sambavam ao seu redor; depois de uma pausa para um gole generoso de cerveja, pontilhou novamente o seu violão e saudou Cartola, decretou a alvorada no morro, ninguém sentia tristeza, muito menos desabor; lembrou de Leci Brandão e viu lá longe o Zé do Caroço dançando com um copo de cerveja na mão abraçado à duas mulatas, limitou-se à cumprimentá-lo com um aceno de cabeça e um sorriso sem interromper o sambalanço; de súbito, o malandro lembrou-se que teria que pegar o trem que sairia às onze horas direto pra Jaçanã, mas como já havia perdido a hora, resolveu ficar e tocar uma do tal Adoniran Barbosa, “Agora só amanha de manhã” pensou.
Em cima de uma laje distante, o malandro viu uma menina mulher da pele preta sambando solitária, a preta o fitou com seus olhos azuis, e escancarou o seu sorriso branco, retribuindo o gesto, o malandro mandou-lhe uma piscadela, e um beijinho no ar carregado de muita malícia, sujeitão charmoso que só.
Ali do ladinho, o malandro percebeu um sujeito meio ressabiado, de boina e camisa surrada aberta até o umbigo, o camarada olhava pros lados aflito e preocupado; meteu a mão no bolso e puxou um fumo diferente, ainda desconfiado, perdeu alguns minutos entretido com o cigarrinho que teimava em enrolar, quando percebeu que estava sendo observado pelo malandro, o sujeito se aproximou e falou acompanhado de um riso sacana – Vou apertar, mas não vou acender agora – meteu o cigarrinho no bolso da camisa, e se mandou
Varou a madrugada na favela, fazendo a alegria do povão, cantando de um jeito maroto e vivo, e tocando violão como aprendeu com Pai João. Pouco à pouco, o morro esvaziou-se, e o malandro viu que era hora de correr atrás do bonde, ainda sorrindo, acendeu mais uma cigarrilha de palha e ajeitou novamente seu chapéu; ajoelho-se e guardou vagarosamente o seu violão chorão na mala; meio embriagado, viu a pretinha da laje se aproximando sorrateira de vestidinho azul claro.
- Me pediram pra entregar o seu pagamento – Disse a preta com voz tímida tentando esconder o sorriso.
O malandro levantou-se, passou a mão no rosto da moça, e lhe deu um beijo sem nem ao menos perguntar o seu nome, a moça desandou ainda mais na timidez, esticou-lhe os braços e entregou o pagamento ao homem, o malandro pegou a garrafa de cachaça das mãos da moça, botou embaixo do braço, jogou o violão nas costas, e foi-se embora assoviando alguma música do Jamelão.
(Bruno Ottenio)
quinta-feira, 30 de junho de 2011
Boa noite, bom dia
Pseudo-crônica
Mal o atabaque estralou na mão de um filho de Oxóssi, a Negra já saltou num pulo expressivo e girou em volta de si mesma. Pés descalços, cabelos suspensos, e vestido branco rodado; a Preta dançava pros Orixás, brincava de ser Iansã, sorria feito Exú malandro, o terreiro ficou pequeno pra tanta formosura, mal se via o rosto da Crioula, só um vulto negro transcendendo os limites do tempo, do ritmo, dos planos.
Naquela congada, a Neguinha tornou-se a rainha do jongo, pulava pra cá, pulava pra lá, girava como um peão, e esvoaçava a cabeleira. Coisa linda nunca viram igual, dizem que foi a Crioula mais bela que já passou pelo Rompe Mato, tem caboclos dizendo que foram as duas horas mais curtas de suas vida, tamanho o encanto da Negra ao dançar.
Findo batuque, a Preta sorriu extasiada, passou as mãos sobre os cabelos, e os amarrou com um lenço florido, lavou o rosto e disse com a voz cansada – Tenho que ir, pego o ônibus às dez – E então ela partiu, voltou pra imanência.
Ilhada em meio à um amontoado de latas, a Preta olhava através da janela do ônibus e pensava na vida que tinha pra levar, nas contas pra pagar, no dia seguinte de trabalho; sacou um livro da bolsa e tentou ler um pouco de Guimarães Rosa, mas foi interrompida pelos buchichos que vinham do banco de trás, um casal de adolescentes discutindo a relação dentro do coletivo em pleno engarrafamento – “Você é um imbecil, seu ridículo” – acusou a menina. Tentou mais uma vez focar a sua atenção no livreto do Guimarães, mas dessa vez a distração foi ainda maior – “Em breve Jesus irá voltar meus irmãos” – Berrava efusivamente um senhor engravatado ao fundo do ônibus – “Tomara” – falou a Negra baixinho como se conversasse com ela mesma.
Cada passageiro uma história, um desafio, um castigo. Passou a observar algumas senhoras sentadas mais à frente, e viu a dor da luta e do descaso estampados nas peles negras, reconheceu o peso da vida e da morte refletido em alguns olhos tristes que também buscavam alguma luz através da janela do ônibus. Quando ela percebeu, estava transcendendo novamente, mas foi interrompida por uma nova distração:
- O negócio é o seguinte cambada, isso aqui é um assalto e não quero ninguém dando vacilo hein, vai botando celular, carteira, mp3, relógio, tudo aqui dentro, se ficar de patifaria vai tomar tiro na cara pode crer ?
Um por um, os dois moleques de touca e óculos escuros foram recolhendo os celulares, carteiras e badulaques alheios; estenderam o saco plástico em direção da Negra, mas dessa vez ele não foi preenchido, ela apertou a bolsa contra o peito e apenas encarou o menino com o olhar firme.
- Escuta aqui Neguinha, tu ta querendo morrer ?
- Eu sei o que você está sentindo – Respondeu a Negra, com a voz doce e com os olhos cheios d’água.
O moleque deu dois passos pra trás e tirou os óculos revelando os olhos assustados, cutucou o parceiro que estava logo atrás, e sem dizer uma só palavra desceram do ônibus antes de concluírem o assalto.
Quando chegou em casa, a Negra desabou sobre a poltrona velha e ficou imóvel durante um longo tempo, aos poucos foi se desmanchando em lágrimas de alivio, procurou sob a blusa sua medalha de São Jorge, e quando encontrou tascou-a um beijo como se agradecesse ao santo guerreiro pela vida; a Negrinha estava protegida, essa Preta tem o corpo fechado.
(Bruno Ottenio)
sábado, 18 de junho de 2011
[...] Pós-moderno
Pseudo-crônica
“La Fête”, esse é o nome da mais nova boate que inaugurou aqui pros lados do São João. Cabelo milimetricamente penteado, barba precisamente bem feita, um tapa na escovação pra tirar o “bafo”, e uma gotícula poderosa do Paco Rabanne que comprei na vinte cinco; prontíssimo pra cair na farra.
Por falta de companhia, decidi conhecer o cafofo sozinho mesmo. Na entrada havia um tumulto desgraçado causado por uns sabichões pré-adolescentes que armaram o maior barraco por conta da faixa etária – Você sabe por um acaso quem é o meu pai?! – o segurança apenas sacudia a cabeça dizendo que não. Um rapazote magricela e bem vestido chegou em mim e disse meio ressabiado – Eae Brother, estou com uns comprimidos legais aqui, pra tirar o sono, saca ? – Saco, peguei logo dois, estava exausto.
Lugarzinho aconchegante, parecia aqueles botecos americanos que se vê nos filmes do Tarantino, gente bonita, boa decoração e o melhor do “Drumembeis”; juntei-me ao balcão e junto com um assovio inconsciente, gritei pro homem do bar:
- Amigo, cowboy !
- Ta na mão chefe – prontificou-se deslizando o copo de uísque pelo balcão.
- Amigo ! (assovio)
- Amigo ! (assovio)
- Amigo ! (assovio)
Fiquei mais tranqüilo, relaxei, resolvi dançar, dancei, dancei, dancei, cansei, tomei um comprimido, e dancei, dancei, dancei. Vi lá longe um sujeito me encarando de um jeito meio estranho, quando levantou-se e veio caminhando em minha direção, pode vê-lo melhor; sujeito bonito, cabelos pretos arrepiados e bem aparados, barba por fazer, pinta de jogador de beisebol, e um elegantíssimo terno Ralph Lauren.
- Você é bi ? – Perguntou o homenzarrão se encostando perto do meu ouvido, não entendi a pergunta e quis parecer simpático.
- Sou Corinthians, desde moleque, daqueles roxos, podem falar o que quiserem mais aquele ataque de oitenta e dois sem dúvidas foi o melhor, Casagrande, Sócrates e Ataliba, que time !
- Você beija homens? – Dessa vez o cidadão foi mais especifico.
- Sim claro, meu filho, meu pai, meus tios, meu avô...
- Olha aqui Brother, quero saber se você gosta de beijar homens na boca – O bonitão estava irritado dessa vez.
- Aaaaaaa, entendi (tentei, mas não consegui disfarçar a risadinha sem graça) mas não, não beijo não, tenho o maior respeito pelos irmãos, mas não.
O grandalhão se sacudiu, esbravejou algo, bateu o pé, e voltou me maldizendo à caminho do mesmo lugar onde estava sentado, não entendi muito bem a intenção do malandro, mas relevei a sua crise histérica momentânea.
Esses comprimidos realmente fazem efeito, comecei sentir umas coisas estranhas, enxergar formas abstratas, luzes bilaterais, vértices difundidos, resolvi ir embora, estava tarde.
Antes de cruzar a porta, acendi um cigarro, e fitei o salão sem nenhum motivo especial, só pra ver o rosto das pessoas; elas estavam felizes, anestesiadas, saindo de si, aflorando-se num mundo despudorado; sorri sozinho, também sem motivos. Antes do derradeiro trago, vi no fundo do salão, duas mulheres de “mimimi”, fiquei na tara de que elas estariam se beijando, por um segundo pensei em continuar na festa e tentar realizar a minha mais sórdida fantasia sexual, mas supus que elas só estariam conversando. Traguei, cocei os olhos, e parti.
(Bruno Ottenio)
domingo, 5 de junho de 2011
A moça que (des)amou
Pseudo-crônica
Cresceu sempre muito bem alimentada à base de iogurte, leite em pó, e pão de forma com presunto e queijo; sua lancheira sempre era a mais recheada da turma.
Um amor de menininha, um orgulho pro papai, o docinho da mamãe; tocava Beethoven no piano para as visitas, ás vezes até arriscava uma palinha nas poesias de Dostoiévski – Que graça! – exultavam as visitas, batendo palminhas e enchendo os olhos d’água com sorrisos bobos.
Garotinha simpática era aquela, cabelos dourados cor de sol, sempre amarrado com um lenço cor-de-rosa bem engomado, o vestidinho sempre impecável repleto de rendas e babados, o sapatinho de boneca, havia ganhado do papai no último aniversário. Quando abria um sorriso, tudo ficava em paz, tudo se ajeitava [...]doce e harmonioso sorriso.
Começou cedo à trabalhar no escritório contábil do pai, embora não fosse necessário, ela levava à sério o setor de arquivos. Responsável e dedicada, era tecida de elogios pelo pai coruja, que à cada dois meses à presenteava com um generoso aumento.
Quando a mamãe percebeu, o seu tesouro já havia virado rapariga; não tocava mais piano, e nem beijava os pais na frente das amigas. Costumava se trancar no quarto, e ouvir bossa nova pensando nos amores platônicos, ninguém descrevia tão bem os seus sentimentos, quanto Tom Jobim.
Desde de criança, o papai sempre à alertou sobre os rapazes, mas a moça era curiosa, teimosa, aflita, apaixonou-se, amou além da conta, e chorou como o pai havia previsto. Chorou dessa vez por perder um amor real, e não platônico, percebeu que o real doía ainda mais, e percebeu que o Tom Jobim era meio abstrato, positivista demais, passou à preferir o Chico, trancou o peito.
Resolveu dançar pela dança do mundo, bailou com rapazes diferentes, com moças diferentes, confundiu os prazeres, alternou taras, virou noites e mais noites em claro, sorrindo e cantando, chorando e remoendo. Tentou de novo, uma, duas, três vezes...não conseguia mais, deixou de amar.
Teve uma vida confortável e maluca, experimentou de tudo, viu o mundo em suas várias facetas, até que sossegou com previu que sossegaria; Mal conseguiu chorar quando o pai morreu dois meses depois da mãe; pitava seu cigarro de menta procurando lembranças na varanda de casa, mas nada vinha-lhe à mente, todos os doces momentos haviam se apagado em sua mente já cansada.
Morreu velhinha de morte morrida, sozinha em casa [...] bebeu o cálice de vinho, depositou o cigarro ainda aceso na mesinha de centro, sentou-se vagarosamente na cadeira de balanço, e sentiu o peito apertar como à tempos não sentia, havia até esquecido que ali batia um coração, um pouco antes de morrer, ouviu a introdução de uma música do Chico que tocava na vitrola, tentou identificá-la para torná-la a sua música de morte, mas antes do carioca cantar, ela cochilou.
(Bruno Ottenio)
domingo, 29 de maio de 2011
Café amargo
Baboseira
(Contribuição da famigerada Jamile Angelo)
Ontem eu fui dormir e percebi como eu gostava da minha cama. Como eu gostava de dormir esparramada e cheia de travesseiros.
Hoje eu acordei e já arrumei minha cama, não gosto de ter que fazer isso depois. Fui pra cozinha e não tinha nenhum copo sujo de coca-cola em cima da pia, passei o meu café. Exatamente um copo, não ficou forte nem fraco, não sobrou e nem faltou. O dia seguiu tranqüilo não tinha nada fora do lugar, não tinha maços de cigarro espalhados pela casa, nem muitos fios de cabelo no chão.
Adoro passar o dia no meu quarto, sozinha, lendo os textos para a aula de amanhã. O tempo nem sempre passa rápido, mas quando escurece tudo está em ordem e o dia foi exatamente como deveria ser.
Não sei por que, mas a verdade é que eu trocaria esse dia perfeito, com todas essas coisas que eu tanto gosto, por um dia com você!
(Jamile Angelo)
sábado, 28 de maio de 2011
Reajuste
Pseudo-crônica
“Ilmo Sr locatário Paulo Roberto Campos Lopes
“Ilmo Sr locatário Paulo Roberto Campos Lopes
Viemos por meio desta, comunicar-lhe que o aluguel do imóvel sitio à Rua Florindo Cibin, nº 781, centro, Americana –SP, sofrerá um reajuste de seis por cento como previsto e formalizado no contrato de locação. À partir de junho, o seu aluguel já será reajustado e incluído os devidos tributos. Caso haja eventuais dúvidas, favor entrar em contato com o nosso departamento financeiro, Obrigada.”
- Escuta aqui ô Boy, que porcaria é essa? – Perguntou indignado o empresário gordo de cabelos brancos ralos.
O motoboy magricela parou imediatamente de fuçar no celular, e foi acometido por um surto de raiva instantânea. Sentiu vontade de responder – Boy é a Puta que lhe paril – mas achou melhor não criar caso.
- É um comunicado campeão.
- E o que essa palhaçada quer dizer?
- É só ler amizade – Respondeu debochando e voltando novamente à atenção para o celular.
- Seis por cento de reajuste, isso é um assalto ! – Esbravejou o gordão esmurrando a mesa.
- Pois é chefe, mãos ao alto! – Tentou descontrair mas não deu certo.
- E você ainda acha graça seu moleque de merda? Isso é inadmissível, não vou pagar seis por cento à mais, nem por decreto, vou consultar meu advogado, vou aos órgãos responsáveis, vou ao PROCON, vou até aos quintos dos infernos, mas não pago seis por cento.
- Ok Chefe, é só assinar o protocolo – Falou mais despretensioso que nunca, com a intenção de finalizar as lamentações.
- Não vou assinar porcaria nenhuma – Bateu com a caneta na mesa, recostou sobre a cadeira, e cruzou os braços com cara de garoto mimado.
Já sem saco para tanta ladainha, o motoboy se aproximou da mesa do grandalhão, puxou com raiva o protocolo, e o enfio dentro da bolsa sem dizer uma só palavra, fitou-o com os punhos fechados por alguns segundos, virou as costas, e partiu. Antes de cruzar a porta, parou o passo, virou-se, e desabafou.
- É complicado né chefe? Esse negócio de reajuste...O preço do ônibus que eu tomo pra trabalhar, sofreu um reajuste de oito por cento, a gasolina está os olhos da cara, dizem que o reajuste foi pra mais de cinco por cento, esses dias fui comprar o leite dos meus moleques, e o preço estava cinqüenta centavos mais caro, sem contar essas taxas de financiamentos malucas, ainda só não comprei a minha gringa, por conta desses juros abusivos. E sabe o que me deixa mais chateado Doutor, é que ninguém me mandou um comunicado.
Apoiando o queixo com as duas mãos sobre a mesa, o gordão estava imóvel e boquiaberto. Sem dizer nada, fez sinal para o motoboy magricela se aproximar, escreveu algo no ar com uma caneta imaginária como se pedisse de volta o bendito protocolo, socando a mão na bolsa, o motoboy sacou o protocolo amassado e jogou com ar de superior na mesa do empresário. Mas que depressa o gordão assinou o protocolo e fez sinal para o motoboy esperar mais um segundo, levantou-se da cadeira, enfio a mão no bolso, e puxou uma carteira rechonchuda, fuçou o calhamaço de dinheiros por alguns segundos, e a fechou depois de pegar vinte reais.
- Tome um refrigerante.
O magricela pegou o dinheiro, o protocolo e socou tudo na bolsa. Saiu satisfeito do escritório, e tomou uma cerveja gelada com ar de malandro orgulhoso no boteco do André.
(Bruno Ottenio)
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Ateísmo, a nova tendência do verão
Idéia
Mesmo depois de embarcar nesse destruidor de ideologias que é o curso de Ciências Sociais, cujo a principal função é catequizar inversamente os nobres e críticos alunos intelectuais, ainda teimo em acreditar em “Deus”
Ás vezes chego a acreditar que não passa de charme, é requintado afirmar em alto e bom som “Eu sou ateu”. Porém, toda via, por hora, minha intenção não é bancar o testemunha de Jeová e evangelizar os jovens mancebos aos domingos de manhã, e sim falar um pouco desse cidadão confuso e irônico que todos o chamam de Deus.
Uma vez escutei uma frase engraçada, “Deus é um garoto levado, brincando com uma lupa sobre um formigueiro”, confesso que não hesitei em concordar com tal frase. Na minha humilde opinião Deus existe sim, mas o que eu direi aqui poderá chocar as carolas de plantão, por isso se você ainda imprime folhetos pra Santo Expedito para atingir a graça, ainda vai à missa todo domingo pra ouvir sempre o mesmo discurso, e ainda se confessa com o confiável vigário duas vezes ao mês, pare agora de ler essa heresia e vá se benzer o mais rápido que puder.
Deus não é um senhor de cabelos e barbas brancas com um cajado na mão, ele sou eu, é você, é o cachorro da vizinha, é o mendigo da praça da Sé, é o mar, o vento, os sentimentos, Deus é o amor, o ódio, a íra, a alegria, o contentamento, o descontente. Deus não está nas igrejas, mas sim nos bordéis, nos cassinos e nas bocas de fumo.
Deus tem projetos macros, ele não liga se você está triste porque não ganhou aquele tão sonhado presente de natal, está pouco se lixando se está sofrendo porque seu namorado fugiu com o circo e casou-se com a trapezista, Deus não vai te mandar pro mármore do inferno se você transar antes, durante, ou depois do casamento, e ele está cagando e andando pra quantas vezes você foi no culto essa semana.
“Ele morreu porque Deus quis assim”, não, ele não quis assim, o cara morreu porque simplesmente tinha que morrer. Os seus sentimentos individuais são seus e Deus não está nem aí para o seu egocentrismo, e para a sua hipocrisia. Ás vezes ele tira um barato da gente, pra matar o tempo celeste, mas ás vezes faz a coisa certa.
“Tentei ser crente, mas meu Cristo é diferente”
AXÉ
(Bruno Ottenio)
domingo, 15 de maio de 2011
Caixa de cervejas
Pseudo-crônica
Depois de uma semana exaustiva ministrando aulas nas turmas de ensino médio, finalmente chegou a tão esperada sexta-feira à tarde. Saí do colégio com um palpite famigerado de tomar cerveja com porção de queijo parmesão; passei no supermercado no caminho de casa e sem hesitar depositei uma caixa de cervejas no carrinho de compras; saí cruzando os corredores em busca do queijo – “Queijo Parmesão Temperado” – era isso que dizia a embalagem, resolvi experimentar; ao lado da prateleira de queijos, havia a sugestão de alguns vinhos, lembrei da patroa, ela adora vinho, apanhei uma garrafa – “Tinto suave de mesa” – parecia ser bom.
Me casei à pouco tempo, sempre me esqueço a data mas faz uns quatro anos mais ou menos, ainda não temos filhos, não por falta de tentativas, deve ter algo errado com a gente.
Chego em casa atrapalhado com a sacola e dou de cara com a Patroa sentada rente à mesa com cara de amuada, resmungava algo em baixo tom, como se conversasse com um amigo imaginário. Dando-se por conta da minha presença, ergueu os olhos e me deu um sorriso triste seguido de um beijo rápido.
Lamuriou-se então fervorosamente, estava com problemas no trabalho, datas estipuladas, pressão do chefe, e um milhão de planilhas pra preencher. Como não entendo bulhufas de setores administrativos, pude apenas ouvir, e arriscar a dizer que tudo iria dar certo.
- Não sei pra que uma caixa de cerveja ! - Reclamou enquanto eu desensacava a cerveja, o queijo e o vinho, fingi que não ouvi.
- Adoro esse vinho ! – Contentou-se agora já abrindo a garrafa.
Enquanto cortava o parmesão em cubos, conversávamos sobre várias coisas; sobre o feriado na praia, sobre o stress das aulas, sobre o governo Dilma, sobre como o cabelo da Kátia havia ficado engraçado, até sobre o novo carro zero-quilômetro que o vizinho comprou, carro ridículo.
Apanhei uma cerveja e me esparramei no sofá, me atrapalhei um pouco com o controle remoto, os meus momentos na sala eram raríssimos. Logo atrás já veio a Patroa, também segurando uma lata de cerveja.
- Não sei pra que uma caixa de cerveja ! – Tornou a esbravejar um pouco mais dócil dessa vez.
Deitou a meu lado no sofá apertado, e abraçou-me como se temesse um dia me perder. Continuamos conversando por muito tempo, vez ou outra prestávamos atenção no filme sem graça que passava na TV. Já com o riso mole, me abraçava ainda mais forte e fazia cachos no meu cabelo.
Percebi que a cerveja havia acabado, a garrafa de vinho estava seca no chão da sala ao lado do prato vazio que à pouco estava o parmesão. Sentíamos-nos mais cúmplices do que nunca, sua pernas entrelaçadas às minhas, se tornavam uma só. Não fizemos amor naquela noite, apenas dormimos abraçados e bêbados; antes de pegar no sono ela abriu um sorriso embriagado, olhou nos meus olhos e disse rendendo-se ás gargalhadas.
- Não sei pra que uma caixa de cerveja – Apertou-me e adormeceu
(Bruno Ottenio)
O trabalho enobrece os "laços"
Pseudo-crônica
Fiquei desempregado pra mais de um ano, comi o pão que o Tinhoso amassou, vendia o almoço pra comprar o jantar, não sobrava cruzeiros nem pra molhar o beiço no boteco do Messias. A situação ficou preta pro meu lado, estava aceitando qualquer tipo de cilada que me aparecesse, desde vigia noturno, até à atendente de fast-food. Vendo o meu aperto, minha mãe gentilmente cedia alguns trocados de vez em quando pra manter o meu vício e comprar alguns cigarros, mas não queria abusar da velha, foi aí que decidi tocar violão na praça da Sé pra não depender mais das migalhas da pobrezinha, não deu muito certo, as músicas do Roberto Carlos não faziam mais tanto sucesso quanto antigamente. Ia à entrevistas por volta de três vezes por semana, mas a resposta era sempre a mesma – Assim que tivermos um parecer retornamos pra ti – pois é, não retornavam, e quando o faziam, era apenas pra dizer que meu perfil não era compatível com a proposta da empresa. A urucubaca estava feita, e muito bem feita por sinal.
No início meus amigos me deram uma baita força, me emprestavam uma grana, faziam questão da minha companhia nos passeios de sábado à noite, vez ou outra até pagavam a minha cerveja, mas essas generosidades foram se tornando cada vez mais escassas, até que me vi sozinho.
O Charlão nunca mais passou em casa pro jogarmos sinuca e comermos amendoim com uísque, o Juninho sumiu no mapa e me abandonou nas quarta-feira que religiosamente assistíamos os jogos regados à cerveja do campeonato Brasileiro, nem se quer pro futebol nas quintas à noite eu era convidado, e a Juliana, minha namorada, ou melhor, ex-namorada, disse que estava confusa em relação aos sentimentos, queria conhecer novas pessoas, precisava de um tempo, me dispensou.
Passei incontáveis finais de semana na solidão dos meus aposentos, sendo praticamente obrigado à assistir aos insultos à minha inteligência que são os programas de TV que se vê hoje em dia. Estava na lama, sozinho, sem dinheiro, e assistindo “A Lagoa Azul – Parte II” num domingo à tarde, era o fim.
Mas eis que o Nosso Senhor Jesus Cristo, colocou a mão em meu caminho, e derramou suas graças sobre mim, consegui enfim um bendito emprego. Passei a trabalhar como auxiliar de almoxarifado no centro da cidade, não era lá essas coisas mas dava pra levantar um faz-me-rir.
Minha vida voltou ao normal, desde então não fiquei em casa um final de semana sequer,agora sempre sou convidado e minha presença é sempre garantida em toda e qualquer reunião entre amigos. Vou pra churrascos, festinhas, barzinhos, botecos, bodegas, biroscas, baladas, quermesses, entre outras centenas de lugares, sempre acompanhado é claro, dos meus verdadeiros amigos, Charlão, Juninho e companhia. De vez em quando sobra até uns trocados pra comer um Mc Donalds com a Jú...Ah é esqueci de dizer, eu e a Juliana voltamos à namorar, ano que vem tem casório na certa, sabe como é, quando bate o amor não tem jeito.
quarta-feira, 11 de maio de 2011
Tú és bossa nova
Baboseira
"Conheço um milhão de pessoas, tenho poucos amigos, outros tantos já perdi, amizade é algo frágil como uma peça de porcelana, um só esbarrão e tudo vira caco, além de perder-se fácil como agulhas no palheiro. Os drogados morrem, os malandros são presos, e os importantes se vão. As mulheres também partem, algumas vão e não voltam, outras vem e não saem mais, “Por trás de um homem triste, há sempre uma mulher feliz”, como diria aquele outro.
Essa festa está uma loucura, sexo, cerveja e vazio, dá até pra ouvir o eco, vou tomar mais uma pra preencher esse maldito espaço. Ás dúvidas ainda estão em mim, meu nome é Bentinho, mas me chame de Escobar."
(Bruno Ottenio)
domingo, 1 de maio de 2011
Sobre o fim do eu Drummond
Baboseira
Pulou da cama às onze e meia, acordou menino, beliscou uma coisa cá outra lá, fingiu ser ator, dramaturgo, dançou, rebolou e mais uma vez fantasiou o impossível. A Babilônia é atraente até onde os olhos conseguem ver, esteve com verdadeiros e sentiu-se na paz de dizer verdades, chorou internamente mas sorriu do outro lado, a vida é curta negro.
Em alguns momentos hesitou, em outros consentiu, até tudo se dissolver numa nova gargalhada engasgada de álcool e experiências. Eram todos compatíveis, todos iguais e ridiculamente diferentes, não estava são, nunca esteve, ninguém está.
Foi à França com Estelle e Elodí, especulou sobre o petróleo na Venezuela, fumou haxixe em Bogotá, bebeu cevada em Madureira,e no fim pensou que fosse Drummond. Falou asneiras e mais asneiras e mais asneiras, imaginou transas, tranças, traças, grotescas, engraçadas, estava em paz.
Acordou com um coração e dormiu com outro, dormiu homem, ele estava de volta, voltou doutor.
(Bruno Ottenio)
(Bruno Ottenio)
quarta-feira, 20 de abril de 2011
Tarantino
Pseudo-crônica
Na minha opinião, a melhor obra do Tarantino foi o Pulp Fiction, o filme é definitivamente ótimo em todos os sentidos, cenas sangrentas, tensões a flor da pele, roteiro majestoso e diálogos quase que intermináveis. Um dos diálogos que mais me chamou a atenção e me fez refletir, foi aquele cujo Mia Wallace e Vincent Vegan estão no bar anos sessenta e a desinibida Sra. Wallace comenta que só conseguimos saber que encontramos a “Pessoa certa”, através dos momentos que calamo-nos por um instante e o silêncio não nos incomoda, ficamos à vontade em silêncio na presença do outro.
...
As três da tarde, parei na lanchonete do Oliveira e resolvi comer alguma coisa pra tapear o estômago até a hora do jantar, sentei-me em uma mesa afastada longe da agitação, não estava lá muito católico. Batucava os dedos sobre mesa seguindo o ritmo de uma música desconhecida que tocava no rádio, desconfortavelmente, aguardava o cardápio e as sugestões ridículas que estamos acostumados a ouvir dessas garçonetes de meia idade.
- Boa tarde moço, gostaria de ouvir as sugestões do dia?
Levantei a cabeça já impaciente, e disparei em tom agressivo:
- Veja bem querida, eu...
Não consegui completar que eu só queria um misto quente é um suco de acerola sem gelo. Ela era linda feito um pôr-do-sol frente ao mar, calei-me e a observei imóvel por não sei ao certo quanto tempo. Cabelos pretos e lisos amarrados como um coque em cima da cabeça, pele morena, lábios finos e bem desenhados, óculos de armação grossa que tornavam seus olhos ainda mais expressivos, estava de calça jeans démodé, camiseta branca com as mangas dobradas até os ombros, e um avental branco com marcas de gordura. Percebendo meu espanto diante de tamanha beleza, a pobrezinha ficou sem jeito, baixou os olhos, sorriu timidamente, e me estendeu o cardápio enquanto corava as bochechas.
Mudei até de cadeira pra poder observa - lá melhor sem a menor questão de tentar disfarçar, indo de mesa em mesa anotando os pedidos, estava nitidamente desconcertada ainda esboçando um sorriso de canto de boca. Não hesitei, antes de partir perguntei o seu nome:
- Alice – Respondeu com a voz macia
Dando um tiro no escuro num súbito de galã das oito, à convidei para sair um dia desses pra tomarmos algo e comermos uma porção de fritas, e abrindo um sorriso agora escancarado, ela aceitou.
[...] Fomos no boteco do Gervásio, boteco limpinho à propósito. No início confesso que me arrependi um bocado de tê-la convidado pra sair, aquele brotinho com jeitinho de tímida era uma matraca incontrolável. Falava demasiadamente de tudo, da crise do petróleo, da novela das seis, do campeonato Brasileiro, dos métodos eficazes de se dobrar uma camisa, dos piores e melhores cantores contemporâneos, da quantidade imensa de calorias que existem em um mero misto-quente, do governo Dilma, do governo Lula, do governo FHC, até do Getúlio ameaçou falar, da queda do dólar, dos prós e contras do comunismo pós-moderno, da fome mundial, do teor alcoólico da brahma, do seus tios que moravam em Bariloche mas não gostavam de esquiar, da sua mãe que gostava de fazer tricô enquanto assistia o programa do Datena...enfim, tudo.
Novamente eu estava imóvel, mas desta vez era de tédio, à cada assunto iniciado e terminado por ela mesma, eu tomava um gole generoso de cerveja e fingia um interesse ímpar na conversa, ás vezes levantava as sobrancelhas expressando espanto, e outras vezes eu apenas sacudia a cabeça positivamente e resmungava algo. De saco cheio de tanta baboseira tomei a atitude mais sensata que poderia ter tomado naquele momento, à puxei pelo braço e lhe dei um beijo demorado valorizando os preciosos minutos em que ela ficaria com a boca ocupada. Terminado o beijo, ela abriu um sorriso cativante mais lindo e harmonioso do que qualquer outro que eu já havia visto e manteve seu rosto próximo ao meu, não disse absolutamente nada, tirou os óculos e manteve o sorriso, ainda abraçada à mim, brincava com a parte de trás dos meus cabelos, hora ou outra deslizava os dedos para meu rosto e com as costas da mão acariciava o meu queixo, ficou cerca de dez minutos apenas me encarando e tentando disfarçar inutilmente um sorriso de alegria, com seus lábios quase tocando novamente os meus, interrompeu o silêncio aconchegante com um novo beijo demorado, Ela era a pessoa certa.
domingo, 10 de abril de 2011
A última crônica de Fernando Sabino
Essa mereçe um espaço no meu blog, crônica majestosa do mestre Fernando Sabino, confesso que os pelos do meu pescoço se arrepiaram, coisa linda demais, leiam.
"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
(Fernando Sabino)
"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
(Fernando Sabino)
Altruísmo
Pseudo-crônica
Após comer arroz, feijão, bisteca frita e abobrinha refogada, fui esticar as pernas e dar uma conferida nas vitrines do centro da cidade. Gosto de acender um cigarro de menta e pitá-lo vagarosamente entres os transeuntes, crente de que não incomodo ninguém com a fumaça, afrouxo a gravata e abro o último botão da camisa; quando o careta acaba, subo lastimando a ladeira que divide o escritório do centro, confesso que fico desgostoso só de pensar na longa tarde de trabalho que me aguarda.
Hoje resolvi fazer um caminho diferente, soube que abriram uma loja de discos na esquina da Carlos Vieira com a Governador Saraiva, resolvi dar uma passada e desembolsar alguns trocados jogados no bolso do paletó para o bem da minha coleção; mais não foi bem isso que aconteceu. Quando virei na Governador Saraiva senti cinco dedos finos e sebosos me puxarem pelo pulso.
- Aí Dotô na moral irmãozinho, bora descola um real pra eu cumê um bagulho na conectividade pode crê ?
- QUE ? – Não entendi nenhuma palavra do que aquele moleque disse.
- Porra chefe to na maior larica aí pode crê, faz mó cota que não bato uma chepa firmeza dotô, arruma na humildade um real pra eu cumê um dog alí no café, pode crê.
- Pode crer garoto, qual é teu nome ?
- Meu nome é Maiconsuel da Silva Nascimento
- Tu tem quantos anos moleque ? – Perguntei com ar de superior
- Tenho quatorze anos moço, to nessa correria frenética aí desde do nove, pode crê ?
- Pode crer, e você mora com quem gurí ?
- Moro mais ninguém não dotô, to no corre sozinho.
- Corre ? – perguntei confuso
- É chefe, to no corre sozinho faz mó cota, agora to correndo pelo certo manja, mais já corri muito errado irmãozinho, fugi de casa no pianinho quando tinha só nove anos pode crê, minha coroa era mó zica, me batia com o cabo da vassora na freqüência, aí casou com o meu padrasto e o chicote estralou, aí resolvi metê o pé. Quando cheguei na rua cheirava cola e fumava pedra pra dar um baratinho e matar a fome
- Mais você é só uma criança !
- Criança é o caralho chefe, ta me tirano ? So sujeito home, Já matei e já meti o cano em muita gente, mais agora eu to pelo certo.
Aquele moleque negro, sujo e mal-cheiroso tomou o meu dia todo, sentia-me no dever de fazer algo por aquele desgraçado. Nem voltei pro trabalho, procurei o restaurante mais próximo e pedi para que ele se servisse à vontade, o negrinho não conseguia nem respirar, atrás da montanha de comida via-se apenas os cabelos duros e despenteados se afundando entre a carne de panela e a feijoada. Fiquei apenas o observando e achando graça em tamanha gula. Quando parou de comer, se recostou na cadeira, pós a mão sobre o estômago e suspirou de alívio.
- Satisfeito ? – Perguntei ainda achando graça
- Orra Dotô, rango top !
Saí do restaurante e me despedi do garoto, saquei cinqüenta reais da carteira e pus no seu bolso da calça; com o sorriso de orelha à orelha, o moleque se enrolou no cobertor, agradeceu, virou às costas e partiu.
Confesso que me senti inexplicavelmente bem, sentia-me com o dever cumprido, tinha feito minha boa ação do dia, estava de consciência puríssima e em paz com os meus deveres cristãos. Cheguei em casa e contei orgulhosamente para o Bento, meu filho caçula, tudo o que havia acontecido; e com a inocência de uma criança ele me perguntou:
- Mas papai, amanhã você vai levá-lo pra almoçar de novo ?
(Bruno Ottenio)
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