segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Maria



 Maria começou cedo, antes mesmo das sardinhas surgirem em sua pele sem melanina. Em seus olhos juvenis, a menina enxergava pés de café, vida feudal e relatos nostálgicos de uma Itália que jamais conheceu.
           Quando moça, descobriu o amor em braços africanos e chorou quando seu pai rejeitou o negro de barba que havia cativado seu coração. Amou-o indiscriminadamente mesmo sem a benção paterna; e trinta anos depois, o preto e o branco ainda se misturam nos risos e nas lágrimas que rodeiam a cama.
         Terrível engano pressupor que Maria esteja sempre feliz. Há anos eu a vejo chorando feito uma viúva. Hora por não suportar a rotina que as máquinas de costura obrigatoriamente lhe impuseram; hora pela frustração da nunca ter conhecido o Leblon de Manuel Carlos; e hora simplesmente por sentir-se só [...] Maria também ri a beça; possui um vasto repertório em palavrões e se sente angustiada quando a vida revira seu passado e traz à tona antigas mágoas.
          Maria já sonhou com uma casa de terreno inteiro em algum bairro nobre; já quis ser professora de matemática no ensino fundamental;  e pensou em ser estilista pra largar tudo e sumir no mundo. Hoje os sonhos de Maria deixaram de ser pretensiosos. Entre os mais extravagantes estão: Descansar, reformar os móveis e viver o suficiente pra ver os meninos formados e livres da nicotina.
         Há incontáveis anos, Maria puxou generosamente minha orelha e disse : “A vida não acontece da forma que queremos. Engole esse choro e vá tomar banho”.  Hoje, penso eu, que Maria é especialista em vida, em sonhos e em tempo. 


"Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta" 


(Bruno Ottenio)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Temaki




       Agora posso comer temaki duas vezes por semana, mas peixe cru me causa ojeriza. Posso fumar dentro de casa, mas o cheiro de fumaça e lustra-móveis só faz aumentar minha enxaqueca. Tenho tempo pra assistir centenas de filmes, mas continuo dormindo antes do fim. Consigo ser pontual e chegar antes do professor, mas a morte da bezerra é sempre mais interessante que os troncos lingüísticos das tribos da Polinésia.

      Me falta olfato para o saudosismo, poucos cheiros me convencem, e amanhã, desejarei coisas que esquecerei novamente nas próximas semanas. Contentar-me? Só quando o ponteiro parar no onze.

(Bruno Ottenio)

terça-feira, 20 de maio de 2014

Ideologia. Benício quer uma pra viver

Benício andava meio revoltoso pelos corredores da faculdade. “Golpe!”; “Companheiro” e “Pequeno-burgueses” eram as palavras que ele mais gostava de falar. Talvez pela tonalidade fonética que as palavras emitiam  - COM PAN HEI RO – Bonito, não? Ou talvez tenha as lido em algum manifesto secundarista que reivindicava a redução do preço da coxinha vendida pela Tia Vilma na cantina escolar – COMPANHEIROS, o preço desse salgado é um GOLPE! Tia Vilma pensa que somos PEQUENO-BURGUESES; isso tem que acabar!

Dedicava-se integralmente à defesa de sua “organização” política – PSAA (Partido Socialista Anti - Acadêmicos) – e armava os maiores quiprocós se algum pseudo-intelectual – assim Benício os chamava – questionasse as legitimidades de seu grupinho político. Deu um tremendo piti quando a Juliana da pedagogia lhe questionou sobre as verbas desviadas pelo PSAA e quase cobriu o Juninho da biblioteconomia de sopapos quando o rapaz confessou que havia lido Mikhail Bakunin. Sem mencionar as inúmeras brigas e alfinetadas ideológicas via facebook; Benício adorava a tecnologia e a possibilidade de evitar o tête-à-tête.

Mas nem tudo era tormenta da vida do grandalhão mal humorado. Benício sorria às vezes. Principalmente quando cortejava futuros militantes potencialmente revoltosos como ele. Cervejinha no boteco, conversinhas no pé d’ouvido, promessas de cargos importantes na gestão do centro acadêmico [...] Essas e outras tantas artimanhas eram utilizadas como cooptação eleitoreira de jovens órfãos de ideologias. O fortalecimento quantitativo do PSAA nunca ocorreu de fato, mas Benício sempre se empenhou na incansável busca por votos. Num passado recente, até pro meu lado o moção andou se engraçando pelos corredores da faculdade, mas me chamou de reacionário quando faltei a assembleia do CA para fazer a prova de antropologia - Antropólogo de gabinete – esbravejou contra mim.

Em relação as provas, Benício não as fazia, até porque, na concepção do rapaz, ser universitário e estudar é uma tremenda contradição. O foco, de fato, é montar uma chapa com os COMPANHEIROS, ganhar as eleições contra os PEQUENO-BURGUESES academicistas e evitar os possíveis GOLPES que a ~democracia~ venha à sofrer. Revolucionário esse tal Benício, hein!



(Bruno Ottenio)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Mazel Tov




           Meu Bar Mitzvá também foi aos treze. Não foi na mesquita, não usei quipá, não me levantaram na cadeira, na verdade, nem sou judeu.
        
           Lembro que o sol queimava forte na esquina da rua Luiz Carlos Prestes com a Tancredo Neves. De pés descalços e rosto suado, sentei em cima da bola de capotão naquele pequeno intervalo antes de voltar à pelada. Rubinho sacou um baseado do bolso e o acendeu com fósforo “Fiat lux”.

- Maricas – Resmugou Rubens quando recusei o beck.

Wilian, o dono da bola, esbravejou comigo:

- A bola vai ficar oval, filho da puta!
         
             Sempesco sacaneou Elías:

- Ei Viadinho, fala pra sua irmã que estou com saudades dela. Já bati várias praquela gostosa.
          
           Antes do brown chegar ao fim, vi Jonas descendo a ladeira feito um tanque de guerra com os olhos cheios de lágrimas. Gritava e gesticulava algo que não conseguíamos entender. Foi chegando, chegando, chegando, e tudo ficou claro:

- Filhos da puta! Filhos da puta! Mataram o Rick! Mataram o Rick!
         
          Mataram o Rick. Quem matou ninguém sabe até hoje. Talvez os gambé, talvez cobrança; mas o Rick estava morto. Não jogamos mais bola naquele dia.


          Ali, virei adulto.

domingo, 22 de setembro de 2013

Os Senhores de Engenho do Século XXI - O "sofrimento" dos homens brancos.




          Hoje vou falar de homem...De homem não, de macho. Isso mesmo, machão, daqueles que coçam o saco e não cruzam as pernas em nenhuma hipótese. Mas não falarei de machos em geral, e sim de um grupo em especial que sofre as terríveis opressões diárias proporcionadas pela pós-modernidade: Machos, brancos, heterossexuais e ricos.
          Há poucos dias, em uma “palestra” do não menos “sofrido” Luiz Felipe Pondé, escuto nas caixas de som um rapaz que lamentava-se no microfone cedido aos expectadores ao fim da descabida fala do Sr. Pondé. Depois de quarenta e cinco minutos vomitando besteiras e sendo constantemente hostilizado com cartazes e vaias vindas de um grupo de feministas; haja visto que o Sr. Pondé detesta feminismo, feministas e minorias, ao ponto de publicar por diversas vezes em sua coluna semanal na Folha de São Paulo ofensas sem rodeios contra as moçoilas militantes as quais ele chama de “Nem tão mulheres assim”. Voltemos ao rapaz convalescido ao microfone.
          Com voz trêmula e emocionada, o jovem sarado, de camiseta pólo e bochechas rosadas agradeceu imensamente a presença do palestrante Pondé, e expressou seu indignado repúdio contras a mulheres ali presentes que hostilizavam o palestrante, se é que podemos chamá-lo assim. “Vocês são todas fascistas e antidemocráticas, ninguém é obrigado a concordar com vocês, é preciso respeitar todas as opiniões diferentes”. Não lembro com exatidão as palavras de lamúrias proferidas pelo rapaz, mas foi basicamente isso.
          Confesso que me comovi à priori com o tom de desolação. Pobre rapaz, vítima e testemunha ocular do “fascismo feminista”. Afinal, nessa sociedade desigual e doentia, todos de alguma forma tornam-se vítimas, certo? Refleti momentaneamente. Deve ser realmente MUITO difícil viver em uma sociedade que discrimina estes senhores tão oprimidos.
          Nunca colocaram os pés na quebrada, nem mesmo para comprar a indispensável droga pré-balada (Esses fazem uso do serviço Express); Jamais receberam tapas na cara da truculenta polícia simplesmente por parecerem suspeitos; Nem nos pesadelos mais terríveis, foram proibidos de entrar naquela loja de grife por estarem mal vestidos; Só utilizam o transporte público quando vão passar as férias na Europa; Aquela camiseta de marca nunca lhes pareceu cara demais; Jamais foram alvos de violência gratuita física e verbal [...] Mas ainda sim, esse grupo secular sofre com o “fascismo” da minorias. Quando digo minorias, não digo numericamente, mas minorias em direitos.
          Logo, entendemos como minorias (em direitos); Mulheres, negros, homossexuais, pobres, entre outros grupos que, segundo os nossos machos sofredores, não passam de ditadores que impõe diariamente um padrão ao qual os varões citados acima jamais conseguirão se enquadrar. Sofrem, choram, e sentem-se oprimidos simplesmente por serem brancos, héteros, homens, ricos.
          Sofrimento de verdade, pra mim (pobre e preto), é quando os “sofridos homens brancos” invertem os papéis. Opressor vira oprimido, e oprimido vira fascista. Zumbi dos Palmares foi fascista, Pagu foi fascista, Malcolm X foi fascista, Lampião foi fascista, Harvey Milk foi fascista. Sendo assim, sejamos todos fascistas contra esses Senhores de Engenho do Século XXI.

       

(Bruno Ottenio)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Didelphis axilóide aguda - O fedor de Isaias.


Logo quando nasceu, Isaias foi diagnosticado como uma doença rara chamada “Didelphis axilóide aguda”. A doença inusitada era manifestada de acordo com as variações emocionais do garoto. Quando sentia-se feliz e empolgado com alguma situação corriqueira, seu córtex cerebral liberava endorfinas que simultaneamente lhe causavam um insuportável mau-cheiro nas axilas.
No começo, quando recebia o suculento peito da mãe após os histéricos gritos de fome, o bebê fechava os olhos com cara de satisfeito e exalava o insuportável fedor que desconcertava Dona Edith, a mãe. Não suportava sequer cinco minutos com a criança em teu seio. Edith revirou o país a procura de algum médico que curasse o “defeito” do menino, mas todos lhe davam o mesmo prognóstico: Não há cura, tampouco tratamento. E assim, por falta de opções, Isaias foi crescendo e fedendo absurdamente sempre que sua boca abria um mísero sorriso de felicidade.
Quando entrou na pré-escola, conheceu os cruéis apelidos atribuídos pelos coleguinhas de sala: Subaqueira, Gambazento, Fedô, entre outros tantos. Lanchava sempre sozinho pra evitar as piadócas e quando fazia gols nas aulas de Educação Física ninguém o abraçava nas comemorações. Todavia, quando ia mal nas provas, triste e livre do mau cheiro, todos se aproximavam para debochar mais uma vez do pobre Isaias.
O calvário maior do rapaz ainda estava por vir. Na adolescência, completamente retraído e traumatizado com os anos de catinga, sempre evitava as festinhas da galera. Ficou surpreso quando recebeu o convite do aniversário de 15 anos da Lurdinha, decidiu que iria e que daria um jeito de conter sua euforia; pobre coitado, bebeu demais e intoxicou a festa da moça com tanto mau-cheiro. As apaixonites da adolescência chegaram e junto delas o insuportável fedor de Isaias, por conta disso, o desgraçado jamais teve uma namorada. Seus tios não suportaram ficar na sala junto de Isaias quando o Vasco ganhou o campeonato brasileiro. E assim o rapaz foi vivendo, fedendo sempre que sentia-se bem, conseqüentemente, espantando todos a sua volta.
Os momentos de mau cheiro ficaram escassos ao longo do tempo. Cresceu, arrumou um emprego, formou-se em Engenharia Civil, comprou um apartamento, no entanto jamais livrou-se de sua doença. Perfumes e loções pós-barba eram inúteis nos momentos que o rapaz desatinava a feder. Logo, se viu sozinho, vítima de sua própria felicidade.
Isaias morreu cedo, quarenta e poucos anos, talvez de tristeza, talvez de ataque cardíaco, fumava demais disseram os médicos. Foi encontrado só em seu apartamento livre de qualquer mau cheiro. Em seu túmulo havia os seguintes dizeres: “Aqui jaz Isaias, fedeu demais porque tentou sorrir”.



(Bruno Ottenio)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Fritas ou nuggets?



               Quem me dera ser bem decidido em qual ônibus subir ou qual cigarro fumar. E lá estava eu, na fila do fast-food que evidentemente escolhi errado no desespero da fome. A atendente ruiva de aparelho nos dentes perguntou-me de forma invasiva – Fritas ou nuggets? – como se fosse simples optar entre as múltiplas possibilidades. Olhei apreensivo para os lados e por uma fração de segundo me afeiçoei às batatas, logo em seguida, minha boca encheu-se d’água em imaginar sabor do frango; era uma decisão difícil. E ali, sendo encarado pelos olhos grandes da moçoila ruiva, divaguei em conflitos proporcionalmente intensos às guerras mundiais.
               Social democracia ou anarquismo radical? Miles Davis ou talvez John Coltrane? Shakespeare Apaixonado ou quem sabe O Último Tango em Paris? Deveria ter citado Foucault nas aulas de sociologia e não Deleuze; talvez ter ido a Moçambique em vez de Angola; queijo a goiabada; geral a numerada; contra-baixo a guitarra; cd’s a vinis – Moço?

- Fritas, por favor! 

(Bruno Ottenio)