quarta-feira, 30 de março de 2011

Queijo Frio

Pseudo-crônica

           
Ele era o homem mais triste do mundo.
           
             Acordou às 7:15hs, morava sozinho, escovou os dentes, tomou uma xícara de café, tornou a escovar os dentes, não gostava do gosto amargo na boca, em frente ao espelho abotoou pacientemente a camisa engomada enquanto fitava-se no espelho, apertou a gravata e notou que envelhecera dez anos em apenas dois, ainda sonolento calçou o sapato caprichosamente engraxado, jogou seu terno por cima dos ombros,e montou na sua motocicleta; era o motoboy mais elegante da cidade.   
            Em meios aos carros, pensava no fim de semana, na cerveja gelada e no pagode da rua XV. Era só mais um dia, foi à prefeitura e expediu certidões negativas, graças ao terno, as mocinhas do atendimento sempre o tratavam bem, mordomias dos executivos; foi ao cartório de notas tirar algumas cópias autenticadas, enquanto aguardava o anúncio da sua senha papeou algo sobre o tempo com um senhor que nunca havia visto, tentou levar a conversa pro futebol mas não deu muito certo, o velhote torcia pro Madureira, pobre coitado. Tornou a prefeitura pois se esquecera de retirar um alvará importantíssimo que lhe custaria o emprego caso fosse esquecido; fez um pausa para o café. Alternando mordidas num pão de queijo e tragadas no cigarro, refletia sobre a vida e como havia tornado-se gélido e solitário, há "séculos" não via seus amigos, seus pais moravam em Bragança Paulista e a passagem só de ida lhes custariam os olhos da cara;  lembrou-se da Lenita, sua ex-namorada, nunca mais havia ligado pra jogar conversa aos ventos, nem se quer pra perguntar como havia passado o dia; quando percebeu que seus olhos marejavam montou na motocicleta e voou.
            O trânsito era caótico feito rodovia pós feriado, se espremendo entre as latas de metal acelerava mordendo os dentes, a buzina freqüente se tornava quase inaudível misturada ao vento ensurdecedor, pra trás ficavam apenas as ofensas e os olhares de reprovação comprovados pelo retrovisor, num lapso de heroísmo e fuga de si, avançou o sinal. [...] O mundo virou de cabeça pra baixo, flutuou por alguns segundos, escorregando violentamente no chão viu seu único terno desintegrar-se no asfalto quente e áspero, o sapato engraxado não estava mais nos seus pés, sua mente tornou-se livre de pensamentos durante aqueles poucos segundos, quando bateu as costas no meio-fio os pensamentos voltaram, um pouco antes de desmaiar ouviu o trompete de Miles Davis.
            Oito costelas quebradas, torção no joelho direito, fratura em ambos os braços, incluindo crânio e pé direito, deslocamento da bacia, e um furo no pulmão. Quando acordou perguntou para a enfermeira sobre a situação de sua motocicleta, com ar de desdém ela não respondeu, apenas o olhou pelo canto dos olhos e resmungou algo que ele não pode entender; ao olhar para o outro lado, viu ao menos sete pessoas vindo em sua direção, ainda estava atordoado mais os reconheceu; seus pais, quatro amigos do colegial, e a aflita Lenita. Em meio à um choro coletivo entoaram mil lamentos e pedidos de desculpas, enquanto exaltavam glórias pelo pobre infeliz ainda estar vivo
 A noite, agora sozinho, ainda incrédulo da presença de todos, se sentia leve, diria até feliz; um pouco antes de dormir, se ajeitou no colchão desconfortável do hospital, afundou-se no travesseiro, fechou os olhos e deixou escapar um sorriso, pensou na Lenita até pegar no sono.


(Bruno Ottenio)