domingo, 31 de julho de 2011

Estopim



                Coçou mais uma vez os olhos por baixo dos óculos de grau e jogou com raiva a caneta sobre a folha de caderno ainda em branco, o relógio acusava oito horas da manhã de um sábado de outubro; lembrou com pesar a aflição que o açoitou ao receber o tema proposto para o seu folhetim semanal que seria publicado no domingo subseqüente: “O amor segundo os amantes”. Tema difícil deduziu logo de cara, nada lhe vinha à mente sobre a dissertação proposta, leu até alguns poemas de Rimbaud para encontrar inspiração para algo tão cauteloso e polêmico, não funcionou.
                Equivocar-se falando de economia, política, ou talvez de gastronomia, é absolutamente tolerável, mas equivocar-se sobre o amor, é considerado uma heresia sem precedentes, o amor inquieta os leitores, causa frissom as madames, e amolece os doutores, - “Xingue a mamãe, mas não fale mal do meu dengo !” – tem gente que se ofende, pensou.
                Recostou-se novamente na mesa, empunhou a caneta na mão esquerda, e encheu o peito como se fosse vomitar um milhão de palavras doces e singelas sobre o amor [...] nada. Enraivou-se mais uma vez e decidiu desvirtuar, levantou-se metendo um chute na cadeira e foi atrás de um estopim. Encheu um copo americano até o meio de cachaça Pedra 90, e virou numa talagada só, largou-se no sofá, ligou a TV, e zapeou cada inútil canal a procura de algo que o estimulasse literariamente; a urgência estipulada pelo editor chefe do jornal, só fazia aumentar a sua angustia, inquietou-se com a quantidade de baboseiras que a TV o impunha, e decidiu sair. Calçou os sapatos, ajeitou a camisa por dentro da calça, vestiu o paletó, e antes de sair passou a mão por cima da estante da sala apanhando um maço de cigarros.
                Quem o via caminhando no calçadão de Ipanema embaixo de um sol escaldante, achava a figura no mínimo pitoresca; andava vagarosamente ajeitando o bigode que por muito pouco não cobria toda a boca, sacou um cigarro e o acendeu com as mãos tremulas, virou-se para o mar e imobilizou-se durante alguns segundos; continuava tão blasé quanto anteriormente, sua mente nunca esteve tão auto-suficiente, não pensava em nada, nem sequer percebeu o quanto o dia estava bonito.
                “Maldito tema” – pensou mais uma vez inconsolado. Suando feito um porco embaixo do paletó com ombreiras, chegou até uma barraca de bagulheiras, sentou-se em frente ao mar, e pediu uma água de coco. Alguns moleques jogavam futebol na areia como se fosse um jogo entre Brasil e Argentina tamanha a seriedade e desempenho dos jovenzinhos, uns rapazes surfavam e faziam poses para as garotas de biquíni, as garotas por sua vez, estavam mais preocupadas em se bronzear e falar da vida alheia, alguns ciclistas passaram numa velocidade incrivelmente rápida logo atrás no calçadão, torceu o pescoço pra ver mas já estavam longe, tentou mais uma vez concentrar-se e focar a sua atenção para aquilo que teria de escrever, mas de nada lhe adiantava.
                Ainda sentado em frente ao mar, e imerso em sua ausência literal, chegou a conclusão que ele próprio não tinha a menor idéia do que era o amor, talvez nem sequer  havia sentido-o algum dia, considerou que seria impossível para um sujeito que nunca amou ninguém escrever sobre algo que nunca desfrutou; sentiu um vazio interminável no peito, engoliu a seco e sentiu saudades daquilo que nunca teve, acendeu mais um cigarro e decidiu que desistiria da publicação, enfiou a mão no bolso do paletó e apanhou o celular na intenção de ligar para o editor chefe para informá-lo sobre a sua desistência; antes de ligar, ergueu os olhos e viu rente ao mar um casal de velhinhos caminhando pacientemente sobre a areia molhada, de mãos dadas e cabelos brancos, trocavam beijos entre os passos e cafunés alternados, foi o sinônimo mais expressivo de amor que ele já havia visto; e num estalo de criatividade e sentimentalismo correu para o seu apartamento, sentou-se sobre a cadeira rente à mesa, e desandou à escrever na folha branca de papel, ao fim, considerou um dos seus melhores folhetins já escritos, “A amor segundo os amantes – O segredo da eternidade”, orgulhou-se do título; faltando pouco tempo para o fechamento da edição, enviou o seu material imbuído da certeza do sucesso e excelência do mesmo.
                Na segunda-feira cedo, chegou radiante ao jornal e cumprimentou Elisete, a recepcionista, com um entusiasmado bom dia; além de não responder, a moçoila esticou-lhe um envelope e disse com uma voz aguda. – “O chefe pediu pra te entregar”. Pegou o papel das mãos da moça, botou a maleta no chão, abriu aflito o envelope e puxou o documento, alisou o bigode, e leu somente o título – “Carta de Demissão”.

(Bruno Ottenio)

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