quinta-feira, 30 de junho de 2011

Boa noite, bom dia

Pseudo-crônica


                Mal o atabaque estralou na mão de um filho de Oxóssi, a Negra já saltou num pulo expressivo e girou em volta de si mesma. Pés descalços, cabelos suspensos, e vestido branco rodado; a Preta dançava pros Orixás, brincava de ser Iansã, sorria feito Exú malandro, o terreiro ficou pequeno pra tanta formosura, mal se via o rosto da Crioula, só um vulto negro transcendendo os limites do tempo, do ritmo, dos planos.
                Naquela congada, a Neguinha tornou-se a rainha do jongo, pulava pra cá, pulava pra lá, girava como um peão, e esvoaçava a cabeleira. Coisa linda nunca viram igual, dizem que foi a Crioula mais bela que já passou  pelo Rompe Mato, tem caboclos dizendo que foram as duas horas mais curtas de suas vida, tamanho o encanto da Negra ao dançar.
                Findo batuque, a Preta sorriu extasiada, passou as mãos sobre os cabelos, e os amarrou com um lenço florido, lavou o rosto e disse com a voz cansada – Tenho que ir, pego o ônibus às dez – E então ela partiu, voltou pra imanência.
                Ilhada em meio à um amontoado de latas, a Preta olhava através da janela do ônibus e pensava na vida que tinha pra levar, nas contas pra pagar, no dia seguinte de trabalho; sacou um livro da bolsa e tentou ler um pouco de Guimarães Rosa, mas foi interrompida pelos buchichos que vinham do banco de trás, um casal de adolescentes discutindo a relação dentro do coletivo em pleno engarrafamento – “Você é um imbecil, seu ridículo” – acusou a menina. Tentou mais uma vez focar a sua atenção no livreto do Guimarães, mas dessa vez a distração foi ainda maior – “Em breve Jesus irá voltar meus irmãos” – Berrava efusivamente um senhor engravatado ao fundo do ônibus – “Tomara” – falou a Negra baixinho como se conversasse com ela mesma.
                Cada passageiro uma história, um desafio, um castigo. Passou a observar algumas senhoras sentadas mais à frente, e viu a dor da luta e do descaso estampados nas peles negras, reconheceu o peso da vida e da morte refletido em alguns olhos tristes que também buscavam alguma luz através da janela do ônibus. Quando ela percebeu, estava transcendendo novamente, mas foi interrompida por uma nova distração:
- O negócio é o seguinte cambada, isso aqui é um assalto e não quero ninguém dando vacilo hein, vai botando celular, carteira, mp3, relógio, tudo aqui dentro, se ficar de patifaria vai tomar tiro na cara pode crer ?
Um por um, os dois moleques de touca e óculos escuros foram recolhendo os celulares, carteiras e badulaques alheios; estenderam o saco plástico em direção da Negra, mas dessa vez ele não foi preenchido,  ela apertou a bolsa contra o peito e apenas encarou o menino com o olhar firme.
 - Escuta aqui Neguinha, tu ta querendo morrer ?
- Eu sei o que você está sentindo – Respondeu a Negra, com a voz doce e com os olhos cheios d’água.
O moleque deu dois passos pra trás e tirou os óculos revelando os olhos assustados, cutucou o parceiro que estava logo atrás, e sem dizer uma só palavra desceram do ônibus antes de concluírem o assalto.
Quando chegou em casa, a Negra desabou sobre a poltrona velha e ficou imóvel durante um longo tempo, aos poucos foi se desmanchando em lágrimas de alivio, procurou sob a blusa sua medalha de São Jorge, e quando encontrou tascou-a um beijo como se agradecesse ao santo guerreiro pela vida; a Negrinha estava protegida, essa Preta tem o corpo fechado.

(Bruno Ottenio)


sábado, 18 de junho de 2011

[...] Pós-moderno

Pseudo-crônica


“La Fête”, esse é o nome da mais nova boate que inaugurou aqui pros lados do São João. Cabelo milimetricamente penteado, barba precisamente bem feita, um tapa na escovação pra tirar o “bafo”, e uma gotícula poderosa do Paco Rabanne que comprei na vinte cinco; prontíssimo pra cair na farra.
Por falta de companhia, decidi conhecer o cafofo sozinho mesmo. Na entrada havia um tumulto desgraçado causado por uns sabichões pré-adolescentes que armaram o maior barraco por conta da faixa etária – Você sabe por um acaso quem é o meu pai?! –  o segurança apenas sacudia a cabeça dizendo que não. Um rapazote magricela e bem vestido chegou em mim e disse meio ressabiado – Eae Brother, estou com uns comprimidos legais aqui, pra tirar o sono, saca ? – Saco, peguei logo dois, estava exausto.
Lugarzinho aconchegante, parecia aqueles botecos americanos que se vê nos filmes do Tarantino, gente bonita, boa decoração e o melhor do “Drumembeis”; juntei-me ao balcão e junto com um assovio inconsciente, gritei pro homem do bar:

- Amigo, cowboy !
- Ta na mão chefe – prontificou-se deslizando o copo de uísque pelo balcão.
- Amigo ! (assovio)
- Amigo ! (assovio)
- Amigo ! (assovio)

Fiquei mais tranqüilo, relaxei, resolvi dançar, dancei, dancei, dancei, cansei, tomei um comprimido, e dancei, dancei, dancei. Vi lá longe um sujeito me encarando de um jeito meio estranho, quando levantou-se e veio caminhando em minha direção, pode vê-lo melhor; sujeito bonito, cabelos pretos arrepiados e bem aparados, barba por fazer, pinta de jogador de beisebol, e um elegantíssimo terno Ralph Lauren.
- Você é bi ? – Perguntou o homenzarrão se encostando perto do meu ouvido, não entendi a pergunta e quis parecer simpático.
- Sou Corinthians, desde moleque, daqueles roxos, podem falar o que quiserem mais aquele ataque de oitenta e dois sem dúvidas foi o melhor, Casagrande, Sócrates e Ataliba, que time !
- Você beija homens? – Dessa vez o cidadão foi mais especifico.
 - Sim claro, meu filho, meu pai, meus tios, meu avô...
- Olha aqui Brother, quero saber se você gosta de beijar homens na boca – O bonitão estava irritado dessa vez.
- Aaaaaaa, entendi (tentei, mas não consegui disfarçar a risadinha sem graça) mas não, não beijo não, tenho o maior respeito pelos irmãos, mas não.
O grandalhão se sacudiu, esbravejou algo, bateu o pé, e voltou me maldizendo à caminho do mesmo lugar onde estava sentado, não entendi muito bem a intenção do malandro, mas relevei a sua crise histérica momentânea.
Esses comprimidos realmente fazem efeito, comecei sentir umas coisas estranhas, enxergar formas abstratas, luzes bilaterais, vértices difundidos, resolvi ir embora, estava tarde.    
Antes de cruzar a porta, acendi um cigarro, e fitei o salão sem nenhum motivo especial, só pra ver o rosto das pessoas; elas estavam felizes, anestesiadas, saindo de si, aflorando-se num mundo despudorado; sorri sozinho, também sem motivos. Antes do derradeiro trago, vi no fundo do salão, duas mulheres de “mimimi”, fiquei na tara de que elas estariam se beijando, por um segundo pensei em continuar na festa e tentar realizar a minha mais sórdida fantasia sexual, mas supus que elas só estariam conversando. Traguei, cocei os olhos, e parti.


(Bruno Ottenio)



domingo, 5 de junho de 2011

A moça que (des)amou

Pseudo-crônica



Cresceu sempre muito bem alimentada à base de iogurte, leite em pó, e pão de forma com presunto e queijo; sua lancheira sempre era a mais recheada da turma.
                Um amor de menininha, um orgulho pro papai, o docinho da mamãe; tocava Beethoven no piano para as visitas, ás vezes até arriscava uma palinha nas poesias de Dostoiévski – Que graça! – exultavam as visitas, batendo palminhas e enchendo os olhos d’água com sorrisos bobos.
                Garotinha simpática era aquela, cabelos dourados cor de sol, sempre amarrado com um lenço cor-de-rosa bem engomado, o vestidinho sempre impecável repleto de rendas e babados, o sapatinho de boneca, havia ganhado do papai no último aniversário. Quando abria um sorriso, tudo ficava em paz, tudo se ajeitava [...]doce e harmonioso sorriso.
                Começou cedo à trabalhar no escritório contábil do pai, embora não fosse necessário, ela levava à sério o setor de arquivos. Responsável e dedicada, era tecida de elogios pelo pai coruja, que à cada dois meses à presenteava com um generoso aumento.
Quando a mamãe percebeu, o seu tesouro já havia virado rapariga; não tocava mais piano, e nem beijava os pais na frente das amigas. Costumava  se trancar no quarto, e ouvir bossa nova pensando nos amores platônicos, ninguém descrevia tão bem os seus sentimentos, quanto Tom Jobim.
                Desde de criança, o papai sempre à alertou sobre os rapazes, mas a moça era curiosa, teimosa, aflita, apaixonou-se, amou além da conta, e chorou como o pai havia previsto. Chorou dessa vez por perder um amor real, e não platônico, percebeu que o real doía ainda mais, e percebeu que o Tom Jobim era meio abstrato, positivista demais, passou à preferir o Chico,  trancou o peito.
                Resolveu dançar pela dança do mundo, bailou com rapazes diferentes, com moças diferentes, confundiu os prazeres, alternou taras, virou noites e mais noites em claro, sorrindo e cantando, chorando e remoendo. Tentou de novo, uma, duas, três vezes...não conseguia mais, deixou de amar.
                Teve uma vida confortável e maluca, experimentou de tudo, viu o mundo em suas várias facetas, até que sossegou com previu que sossegaria; Mal conseguiu chorar quando o pai morreu dois meses depois da mãe; pitava seu cigarro de menta procurando lembranças na varanda de casa, mas nada vinha-lhe à mente, todos os doces momentos haviam se apagado em sua mente já cansada.
                Morreu velhinha de morte morrida, sozinha em casa [...] bebeu o cálice de vinho, depositou o cigarro ainda aceso na mesinha de centro, sentou-se vagarosamente na cadeira de balanço, e sentiu o peito apertar como à tempos não sentia, havia até esquecido que ali batia um coração, um pouco antes de morrer, ouviu a introdução de uma música do Chico que tocava na vitrola, tentou identificá-la para torná-la a sua música de morte, mas antes do carioca cantar, ela cochilou.

(Bruno Ottenio)