quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sorriso doloso

             A parte de trás do cabelo cor de sol ficava enrolada formando um volumoso coque no alto da cabeça, a franja era delicadamente sobreposta sobre as sobrancelhas artisticamente delineadas. Pintava os olhos e os lábios, remodelava os cílios, e deixava escapar um sorriso de canto de boca quando conferia-se pela última vez no espelho do guarda-roupa arcaico. Jogava a bolsa sobre os ombros, pedia a benção de Jah, e tomava o ônibus às nove.
                Vivia à dizer-me que a vida no departamento pessoal era um bocado difícil, provavelmente seria deveras. Passava o dia contando horas, férias, folgas, avisos, décimos terceiros, extras e até mesmo tempo; contava tanto que às vezes encontrava-se consigo mesma em seus sonhos inconscientes, e lhe contava os seus segredos, seus planos, seus medos. Pensava em ir para o litoral, São Vicente talvez, contou pra si mais uma vez.
                Atrás da parede de vidro, via-se apenas seus cabelos reluzentes trançados de maneira bonita e engraçada, quando levantava a cabeça e observava o movimento continuo na repartição pública, abria-se num sorriso tímido e agressivo se acaso visse algo que merecesse tal gesto; sorriso embaraçoso, doloso, difícil não retribuir.
                E assim vivia, contava; e quando não o fazia, apenas ouvia o que as músicas lhe diziam e abria um novo sorriso embotado de esperança e bons fluídos.


(Bruno Ottenio)

domingo, 9 de outubro de 2011

Amnésia induzida

              Deixe de desdém mulher, não finja que esqueceu-se dos meus gostos musicais e nem pense que falhastes em minha memória aquelas várias epopéias que me contaste naquelas noites de Julho.
              Agora tu passas em frente ao botequim e nem se atreve a torcer o pescoço para acenar-me com riso bobo de poetisa que sempre fostes; inconformo-me com tamanha ignorância, e desatino em cachaça junto aos meus “amigos”, que bebem, e cantam Ataulfo Alves desgostosos feito eu.
                Aquele presente que me deu no dia em que completei anos, ainda guardo com muito apreço e estima, faz-me lembrar de ti sempre que o vejo sobre a estante de mogno empoeirada. Mas não arrisco à dizer que tais lembranças sejam benéficas, não sei de fato o que elas representam, mas o sabor é tão doce que amarga em meu paladar já inapurado.
                Pensas que não percebi quando me olhou de canto de olho ontem no metrô rumo à consolação, seus dedos negros folheavam inútilmente “Tristes Trópicos” enquanto me fitava ressabiada, Lévi-Strauss nunca havia sido tão indiferente diante de teus olhos dispersos.
                Sei que já deixou outros bebuns à torto direito, e que cada um morre um pouco dentro de ti à cada dia, mas hoje é domingo e está fazendo sol, talvez passe em sua casa para irmos ao cinema, ou talvez volte para a boemia que tão bem me quer e encontre você em outras rebentas, dessa forma, também morrerei mais um pouco e à matarei outro tanto.
                Agora virei marxista, ando dando pulos, e fazendo revoluções verdadeiramente legítimas, em breve você me verá na televisão ou irá em meu velório. Depois disso, peço por favor que não vanglorie-se ao dizer que um dia fui teu. Guarde esse segredo, e me deixe em sua eterna amnésia.



(Bruno Ottenio)