Pseudo-crônica
Conheci o Carlos, Caca para íntimos, na faculdade de farmácia em meados 1921. Era um doce de rapaz, simpático em todos os sentidos, muito conhecido nas redondezas da universidade por ser considerado por muitos um poço de alegria e carisma. Rapagão moreno, nem magro, nem gordo, dentes arrumados, cabelos negros e dançantes, sem contar o sorriso cativante, posso afirmar sem dúvidas quanto a minha sexualidade que o Caca era um sujeito boa pinta.
Fazia um sucesso danado com as moçoilas da arquitetura, era Caca pra lá, Caca pra cá, um tremendo burburinho, Caca que não é bobo nem nada adorava a confusão instaurada por conta dos seus dotes, quando digo dotes, digo na mais pura inocência, sem maldades, entendam como quiserem.
No auge da sua forma física e esbanjando simpatia, Caca literalmente passava o rodo, não perdoava ninguém, bastava meia dúzia de sorrisinhos e dez minutinhos de conversa e pronto. Confesso que nós, os outros homens, ficávamos com o perdão da palavra "putos" da vida, o infeliz não nos dava espaço, e com todas as menininhas aos seus pés, o campeão aprendeu direitinho como agir. Comprometimento jamais essa era a filosofia do Carlão, abrir seu coração para as garotas nem pensar, sempre frio e calculista em relação a qualquer tipo de sentimento afetivo, rapaz esperto diga-se de passagem.
Eis que um dia surge um broto especial, Caca então se apaixonou loucamente pela primeira, e tragicamente última vez; como dizem os velhos e os adeptos à ditados, "Alegria de pobre dura pouco". E durou mesmo, exatos vinte e um dias, Caca desabou feito um lutador de boxe quando leva um soco certeiro na têmpora depois de sete rounds. Jamais tinha amado alguém, mais tinha certeza que aquela garota seria o único amor de sua vida, ainda não entendo como em apenas vinte e um dias pode-se chegar a essa conclusão, mais enfim, sentimentos são sentimentos.
Com a dor do abandonou apertando o peito, Caca percebeu que levava jeito pra duas coisas; a primeira era fechar a cara e ficar cabisbaixo durante o tempo que fosse necessário; a segunda era escrever. E foi isso que passamos a ver constantemente desde então, durante as aulas, abatido, Caca escrevia freneticamente como se descontasse todos os seus sentimentos naquela folha de caderno amassada, os olhos sempre marejados, o rosto sempre triste e amuado, e o maxilar nitidamente rígido o tempo todo; o pobre coitado sofreu até de distensões no pulso de tanto escrever sentimentos.Escrevia de tudo, poemas, crônicas, jograis, artigos, ensaios, dissertações, enfim, tudo que lhe vinha a mente. E assim se tornou o ex-simpático Caca.
Mantenho contatos com o Carlos até hoje, a última vez que o vi, foi no lançamento do seu décimo livro de poesias; esperei pacientemente na fila aguardando a assinatura de Caca em meu exemplar; quando ele me viu por cima dos seus oculinhos redondos, armou um sorriso tímido como à tempos não o via fazer, o rosto abatido definitivamente não mudou, os olhos pequenos cheios d água ainda continuavam dispersos e tristes; levantou-se, afastou a cadeira pacientemente, e me deu um caloroso e demorado abraço. Conversamos durante uns vinte cinco minutos, até me despedir e voltar pra casa.
Na mesma noite deitado na cama ao lado da minha negra, abri a contra capa do livro, e li a seguinte dedicatória:
"A educação para o sofrimento, evitaria senti-lo, em relação a casos que não o merecem. Durante toda minha vida, nada escrevi, não dêem-me créditos, eu apenas cravava a pena em meu coração sangrado, e deixava que o mesmo o fizesse. É sempre bom revê-lo meu nobre camarada, um grande e forte abraço do seu amigo, Drummond"
Dormi pensativo.
(Bruno Ottenio)