quarta-feira, 20 de abril de 2011

Tarantino

Pseudo-crônica


 

               
Na minha opinião, a melhor obra do Tarantino foi o Pulp Fiction, o filme é definitivamente ótimo em todos os sentidos, cenas sangrentas, tensões a flor da pele, roteiro majestoso e diálogos quase que  intermináveis. Um dos diálogos que mais me chamou a atenção e me fez refletir, foi aquele cujo Mia Wallace e Vincent Vegan estão no bar anos sessenta e a desinibida Sra. Wallace comenta que só conseguimos saber que encontramos  a “Pessoa certa”, através dos momentos que  calamo-nos por um instante e o silêncio não nos incomoda, ficamos à vontade em silêncio na presença do outro.

...

                As três da tarde,  parei na lanchonete do Oliveira e resolvi comer alguma coisa pra tapear o estômago até a hora do jantar, sentei-me em uma mesa afastada longe da agitação, não estava lá muito católico. Batucava os dedos sobre mesa seguindo o ritmo de uma música desconhecida que tocava no rádio, desconfortavelmente, aguardava o cardápio e as sugestões ridículas que estamos acostumados a ouvir dessas garçonetes de meia idade.
                - Boa tarde moço, gostaria de ouvir as sugestões do dia?
Levantei a cabeça já  impaciente, e disparei em tom agressivo:
                - Veja bem querida, eu...
Não consegui completar que eu só queria um misto quente é um suco de acerola sem gelo. Ela era linda feito um pôr-do-sol frente ao mar, calei-me e a observei imóvel por não sei  ao certo quanto tempo. Cabelos pretos e lisos amarrados como um coque em cima da cabeça, pele morena, lábios finos e bem desenhados, óculos de armação grossa que tornavam seus olhos ainda mais expressivos, estava de calça jeans démodé, camiseta branca com as mangas dobradas até os ombros, e um avental branco com marcas de gordura. Percebendo meu espanto diante de tamanha beleza, a pobrezinha ficou sem jeito, baixou os olhos, sorriu timidamente, e  me estendeu o cardápio enquanto corava as bochechas.
Mudei até de cadeira pra poder observa - lá melhor sem  a menor questão  de tentar disfarçar, indo de mesa em mesa anotando os pedidos,  estava nitidamente desconcertada ainda esboçando um sorriso de canto de boca. Não hesitei, antes de partir perguntei o seu nome:
- Alice – Respondeu com a voz macia
                Dando um tiro no escuro num súbito de galã das oito, à convidei para sair um dia desses pra tomarmos algo e comermos uma porção de fritas, e abrindo um sorriso agora escancarado, ela aceitou.
                [...] Fomos no boteco do Gervásio, boteco limpinho à propósito. No início confesso que me arrependi um bocado de tê-la convidado pra sair, aquele brotinho com jeitinho de tímida era uma matraca incontrolável. Falava demasiadamente de tudo, da crise do petróleo, da novela das seis, do campeonato Brasileiro, dos métodos eficazes de se dobrar uma camisa, dos piores e melhores cantores contemporâneos, da quantidade imensa de calorias que existem em um mero misto-quente, do governo Dilma, do governo Lula, do governo FHC, até do Getúlio ameaçou falar, da queda do dólar, dos prós e contras do comunismo pós-moderno, da fome mundial, do teor alcoólico da brahma, do seus tios que moravam em Bariloche mas não gostavam de esquiar, da sua mãe que gostava de fazer tricô enquanto assistia o programa do Datena...enfim, tudo.
                Novamente eu estava imóvel, mas desta vez era de tédio, à cada assunto iniciado e terminado por ela mesma, eu tomava um gole generoso de cerveja  e fingia um interesse ímpar na conversa, ás vezes levantava as sobrancelhas expressando espanto, e outras vezes eu apenas sacudia a cabeça positivamente e resmungava algo. De saco cheio de tanta baboseira tomei a atitude mais sensata que poderia ter tomado naquele momento, à puxei pelo braço e lhe dei um beijo demorado valorizando os preciosos minutos em que ela ficaria com a boca ocupada. Terminado o beijo, ela abriu um sorriso cativante mais lindo e harmonioso do que qualquer outro que eu já havia visto e manteve seu rosto próximo ao meu, não disse absolutamente nada, tirou os óculos e manteve o sorriso, ainda abraçada à mim, brincava com a parte de trás dos meus cabelos, hora ou outra deslizava os dedos para meu rosto e com as costas da mão acariciava o meu queixo, ficou cerca de dez minutos apenas me encarando e tentando disfarçar  inutilmente um sorriso de alegria, com seus lábios quase tocando novamente os meus, interrompeu o silêncio aconchegante com um novo beijo demorado, Ela era a pessoa certa.


(Bruno Ottenio)


domingo, 10 de abril de 2011

A última crônica de Fernando Sabino

Essa mereçe um espaço no meu blog, crônica majestosa do mestre Fernando Sabino, confesso que os pelos do meu pescoço se arrepiaram, coisa linda demais, leiam.



"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."

(Fernando Sabino)

Altruísmo

Pseudo-crônica

Após comer arroz, feijão, bisteca frita e abobrinha refogada,  fui esticar as pernas e dar uma conferida nas vitrines do centro da cidade. Gosto de acender um cigarro de menta e pitá-lo vagarosamente entres os transeuntes, crente de que não incomodo ninguém com a fumaça, afrouxo a gravata e abro o último botão da camisa; quando o careta acaba, subo lastimando a ladeira que divide o escritório do centro, confesso que fico desgostoso só de pensar na longa tarde de trabalho que me aguarda.
Hoje resolvi fazer um caminho diferente, soube que abriram uma loja de discos na esquina da Carlos Vieira com a Governador Saraiva, resolvi dar uma passada e desembolsar alguns trocados jogados no bolso do paletó para o bem da minha coleção; mais não foi bem isso que aconteceu. Quando virei  na Governador Saraiva senti cinco dedos finos e sebosos me puxarem pelo pulso.

- Aí Dotô na moral irmãozinho, bora descola um real pra eu cumê um bagulho na conectividade pode crê ?
- QUE ? – Não entendi nenhuma palavra do que aquele moleque disse.
- Porra chefe to na maior larica aí pode crê, faz cota que não bato uma chepa firmeza dotô, arruma na humildade um real pra eu cumê um dog alí no café, pode crê.
- Pode crer garoto, qual é teu nome ?
- Meu nome é Maiconsuel da Silva Nascimento
- Tu tem quantos anos moleque ? – Perguntei com ar de superior
- Tenho quatorze anos moço, to nessa correria frenética aí desde do nove, pode crê ?
- Pode crer, e você mora com quem gurí ?
- Moro mais ninguém não dotô, to no corre sozinho.
- Corre ? – perguntei confuso
- É chefe, to no corre sozinho faz cota, agora to correndo pelo certo manja, mais já corri muito errado irmãozinho, fugi de casa no pianinho quando tinha só nove anos pode crê, minha coroa era mó zica, me batia com o cabo da vassora na freqüência, aí casou com o meu padrasto e o chicote estralou, aí resolvi metê o pé. Quando cheguei na rua cheirava cola e fumava pedra pra dar um baratinho e matar a fome
- Mais você é só uma criança !
- Criança é o caralho chefe, ta me tirano ? So sujeito home, Já matei e já meti o cano em muita gente, mais agora eu to pelo certo.

Aquele moleque negro, sujo e mal-cheiroso tomou o meu dia todo, sentia-me no dever de fazer algo por aquele desgraçado. Nem voltei pro trabalho, procurei o restaurante mais próximo e pedi para que ele se servisse à vontade, o negrinho não conseguia nem respirar, atrás da montanha de comida via-se apenas os cabelos duros e despenteados se afundando entre a carne de panela e a feijoada. Fiquei apenas o observando e achando graça em tamanha gula. Quando parou de comer, se recostou na cadeira, pós a mão sobre o estômago e suspirou de alívio.

- Satisfeito ? – Perguntei ainda achando graça
- Orra Dotô, rango top !

Saí do restaurante e me despedi do garoto, saquei cinqüenta reais da carteira e pus no seu bolso da calça; com o sorriso de orelha à orelha, o moleque se enrolou no cobertor, agradeceu, virou às costas e partiu.
Confesso que me senti inexplicavelmente bem, sentia-me com o dever cumprido, tinha feito minha boa ação do dia, estava de consciência puríssima e em paz com os meus deveres cristãos. Cheguei em casa e contei orgulhosamente para o Bento, meu filho caçula, tudo o que havia acontecido; e com a inocência de uma criança ele me perguntou:

- Mas papai, amanhã você vai levá-lo pra almoçar de novo ?


(Bruno Ottenio)




quarta-feira, 6 de abril de 2011

Chico ou Jorge ?

Idéia

Há alguns dias surgiu na universidade uma discussão um tanto quanto polêmica, quem é O Cara, Jorge Ben, ou Chico Buarque ? É instaurado o bafafá, o murmurinho toma conta do recinto e aos poucos se tornam gritos envaidecidos, CHICO É POETA, grita um, JORGE É INOVADOR, retruca o outro do lado de lá; CHICO É BURGUÊS, acusam os Benjorianos, JORGE É POSITIVISTA, protestam os Buarquinos. E esse povo de humanas leva tudo sempre pro lado pessoal, e o ego sempre explode no peito "revolucionário" :

- Vá se ferrar seu reacionário neo-liberal !
- Vá você seu pseudo-proletário de merda !
- Isso foge dos padrões fundamentais estipulados pela antropologia, você está sendo determinista e taxativo !
- Só tem propriedade pra falar de favela, quem de fato vive em uma, você é um contraditório sendo sociólogo e empresário ao mesmo tempo !
- Isso é típico da mentalidade capitalista detentora dos bens seu Taylorista de meia tigela !
- Vá as favas seu fascista etnocêntrico, saia do seu conforto e vá ao campo seu antropólogo de gabinete !
- Escuta aqui ô carcamano, você já leu Marx ?

            Pronto, a discussão debandou praí, deixei essa conversa pra lá, Marx é legal, mais Chico e Jorge são mais, não quis misturar as coisas. Cheguei em casa e ouvi Jorge, lendo Chico, e o Marx ? deixa pra lá. Tem gente que ainda está bronqueado com isso, vira a cara e torce o nariz com O Capital embaixo do braço







(Bruno Ottenio)