Pseudo-crônica
Após comer arroz, feijão, bisteca frita e abobrinha refogada, fui esticar as pernas e dar uma conferida nas vitrines do centro da cidade. Gosto de acender um cigarro de menta e pitá-lo vagarosamente entres os transeuntes, crente de que não incomodo ninguém com a fumaça, afrouxo a gravata e abro o último botão da camisa; quando o careta acaba, subo lastimando a ladeira que divide o escritório do centro, confesso que fico desgostoso só de pensar na longa tarde de trabalho que me aguarda.
Hoje resolvi fazer um caminho diferente, soube que abriram uma loja de discos na esquina da Carlos Vieira com a Governador Saraiva, resolvi dar uma passada e desembolsar alguns trocados jogados no bolso do paletó para o bem da minha coleção; mais não foi bem isso que aconteceu. Quando virei na Governador Saraiva senti cinco dedos finos e sebosos me puxarem pelo pulso.
- Aí Dotô na moral irmãozinho, bora descola um real pra eu cumê um bagulho na conectividade pode crê ?
- QUE ? – Não entendi nenhuma palavra do que aquele moleque disse.
- Porra chefe to na maior larica aí pode crê, faz mó cota que não bato uma chepa firmeza dotô, arruma na humildade um real pra eu cumê um dog alí no café, pode crê.
- Pode crer garoto, qual é teu nome ?
- Meu nome é Maiconsuel da Silva Nascimento
- Tu tem quantos anos moleque ? – Perguntei com ar de superior
- Tenho quatorze anos moço, to nessa correria frenética aí desde do nove, pode crê ?
- Pode crer, e você mora com quem gurí ?
- Moro mais ninguém não dotô, to no corre sozinho.
- Corre ? – perguntei confuso
- É chefe, to no corre sozinho faz mó cota, agora to correndo pelo certo manja, mais já corri muito errado irmãozinho, fugi de casa no pianinho quando tinha só nove anos pode crê, minha coroa era mó zica, me batia com o cabo da vassora na freqüência, aí casou com o meu padrasto e o chicote estralou, aí resolvi metê o pé. Quando cheguei na rua cheirava cola e fumava pedra pra dar um baratinho e matar a fome
- Mais você é só uma criança !
- Criança é o caralho chefe, ta me tirano ? So sujeito home, Já matei e já meti o cano em muita gente, mais agora eu to pelo certo.
Aquele moleque negro, sujo e mal-cheiroso tomou o meu dia todo, sentia-me no dever de fazer algo por aquele desgraçado. Nem voltei pro trabalho, procurei o restaurante mais próximo e pedi para que ele se servisse à vontade, o negrinho não conseguia nem respirar, atrás da montanha de comida via-se apenas os cabelos duros e despenteados se afundando entre a carne de panela e a feijoada. Fiquei apenas o observando e achando graça em tamanha gula. Quando parou de comer, se recostou na cadeira, pós a mão sobre o estômago e suspirou de alívio.
- Satisfeito ? – Perguntei ainda achando graça
- Orra Dotô, rango top !
Saí do restaurante e me despedi do garoto, saquei cinqüenta reais da carteira e pus no seu bolso da calça; com o sorriso de orelha à orelha, o moleque se enrolou no cobertor, agradeceu, virou às costas e partiu.
Confesso que me senti inexplicavelmente bem, sentia-me com o dever cumprido, tinha feito minha boa ação do dia, estava de consciência puríssima e em paz com os meus deveres cristãos. Cheguei em casa e contei orgulhosamente para o Bento, meu filho caçula, tudo o que havia acontecido; e com a inocência de uma criança ele me perguntou:
- Mas papai, amanhã você vai levá-lo pra almoçar de novo ?
(Bruno Ottenio)
"Monsieur have money per mangiare"
ResponderExcluirMais uma vez mandou ver, Bruno! Que os pivetes do Brasil tenham voz. Mais do que o almoço do dia, um cigarro aqui, um cobertor ali. E quem sabe, um dia essa realidade parecerá distante.
Satisfação Lilian.
ResponderExcluirNão devemos nos contentar apenas em ofereçer uma refeição ou uma quantia em dinheiro, devemos oferecer dignidade, opurtunidades e respeito.